Histórias da bodega do meu pai - Parte II

 O “homem cachorro” da praça General Osório 


Na praça, e em seus arredores, costumava dormir um mendigo, um “homem-cachorro”! Ninguém parecia notá-lo, era como se ele não existisse! Sem nome..., sem endereço..., sem família, sem passado..., e sem futuro! 

Vivia invisível entre os cães, como se de fato fora ele também um cão, comendo os restos do lixo dos apartamentos! Era um homem de meia-idade (devia ter uns trinta anos), mas parecia ser bem mais velho, um ancião! 

Seus cabelos eram longos e negros, assim como eram negros os seus olhos caninos e sua barba suja. Seu olhar perdido divagava no nada, como a fitar o absoluto, lembrando o olhar perdido dos velhos profetas loucos da Bíblia, ou de um cachorro abandonado por seu dono em meio ao caos das grandes cidades! 

Malcheiroso e magérrimo, sua figura dava pena e desprezo! Ele era um homem, mas lembrava realmente um cão! Trazia nas costas um saco sujo de estopa. Nesse saco guardava seus pertences pessoais: uma foto de “quando era gente”, um par de tênis, uma Bíblia velha, duas peças de roupas, um lençol imundo, e sabe-se lá o que mais! 

Ali, naquele lugar, o “homem-cachorro” era só mais um cão! Um animal imundo da praça! Um lixo, uma mancha na paisagem. O Rio inteiro insistia em me dizer que ele era só um cão! E sua vida nada valia! Poderiam incendiá-lo, espancá-lo ou assassiná-lo, ninguém se importaria! 

Ele não era humano! Era um bicho, um animal, uma mancha na paisagem! 


Perambulava nas ruas de Ipanema, do Leblon e de Copacabana em meio ao coração da civilização nacional, justamente ali — no lugar mais culto do Brasil —, ele havia se transformado em cão, em animal! 

Sempre andando a esmo, carregando o saco de pertences nas costas, como o “Antôe do Urú” das histórias contadas por minha mãe: “Menino, vai tomar banho, se não o Antõe do Urú vai te carregar!”; “Carrega pra onde, mamãe?”; “Carregar para as matas”!

O pobre negro velho, transformado em assombração de minha infância, estava ali revivido, na figura assombrada do “homem-cachorro” da praça General Osório. Seu nome eu não sei. E duvido que alguém mais o saiba! Só sei que era pardo, de meia idade, tinha barba e cabelos compridos, olhos de cachorro abandonado! 

Mas havia uma grande diferença entre o “Antõe do Urú”, descrito por minha mãe, e o “homem-cachorro” da praça General Osório”: todos tinham medo do Antõe do Urú, mas ninguém temia o “homem-cachorro” da praça General Osório...! 

De onde ele veio? Para onde ele vai? Por que foi parar nas ruas do Rio, lá se transformou em um cão? Será que tem pai, tem mãe ou irmãos? Será que tem nome? Qual seria o seu nome? José? Pedro? Antônio? Carlos? Será que alguém chora por ele no Nordeste, ou em Minas Gerais? Será que amou? Será que foi amado? Por onde aquelas pernas finas e frágeis caminharam, antes de chegar ao Rio, e à praça General Osório? 

E acima de tudo, o que fez, para acabar nas ruas, abandonado, como um cachorro? Eu o chamava de “homem-cão”, “ou homem-cachorro”, e nada mais, pois ele vivia como um cão, entre outros cães.

O homem-cachorro era pontual, sempre chegava por volta das nove da noite, revirava o lixo, comia junto com os cães as sobras dos apartamentos. E depois deitava, dormia ao relento, feito um cão, debaixo da marquise, usando o saco de estopa como travesseiro. 

Ninguém parecia notá-lo além de mim. Entre os cães, o homem-cão era só mais um cão! Ao vê-lo chegar eu sempre lembrava das histórias de minha mãe. Todos tinham medo do Antõe do Urú, mas ninguém tinha medo do “homem-cachorro” da praça General Osório! 

Naquela noite um sereno caiu, os carros pararam de circular, reinou o silêncio. Um silêncio aterrador, profundo, como se o Diabo tivesse se esquecido do Rio de Janeiro. Era quando os Anjos apareciam. E quem eram os Anjos? Menino sujos.

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