Pais e filho: Ivan Turguêniev


 
Ivan Turguêniev (1818-1883) compõe junto com Dostoiévski e Tolstói a tríade representativa do romance russo da segunda metade do século XIX. Na sua obra encontramos alguns tipos característicos da Rússia daquele tempo, modelos construídos, muitas vezes, com base em pessoas reais: o camponês ou mujique, a mãe despótica, o senhor latifundiário, a mocinha altiva e destemida, o jovem de ação, o homem supérfluo e o niilista.

 
Pais e filhos (1862), obra-prima do autor, popularizou o termo já usado na filosofia, niilismo, aplicado ao personagem central, Bazárov. Descreve espécie de rebeldia, alguém que não se inclina a nenhuma autoridade nem aceita nenhum princípio sem exame. Bazárov, jovem intelectual, materialista, nega o amor, a arte, a religião e a tradição, e só acredita, segundo suas próprias palavras, apenas em verdades comprovadas empiricamente, demonstradas.
 
O personagem central do romance permite ao autor fazer uma autocrítica do niilismo, própria da geração de 1860, e dos conservadores, da sua geração, de 1840, descritos por Bazárov como “cartas fora do baralho”. Bazárov acompanha seu amigo, o jovem estudante Arkádi Nikolaitch quando ele retorna para casa, no interior da Rússia, depois dos estudos em São Petersburgo, e causa desgosto, também admiração, ao seu pai e seu tio. Ele representa os tempos modernos, do materialismo e utilitarismo, que grassava a Rússia europeia, voltada mais para o Ocidente do que para a realidade local, tradicional. Despreza qualquer autoridade, é antissocial e se proclama niilista.

Conflito geracional

O conflito geracional que se segue é o grande tema do romance. A primeira, dos anos 40, é aquela que compõe a chamada intelligentsia da Rússia, formada por aristocratas, de famílias nobres, portanto, e grandes proprietários de terra, como o próprio autor. São influenciados pela filosofia de Hegel, tendo por base a idealização romântica do espírito humano e a crença na arte como manifestação do belo inerente ao homem.
 
A segunda geração é formada por jovens de origem social menos privilegiada, com acesso à universidade na Europa ocidental, até então exclusiva à aristocracia, defensora dos valores liberais democráticos, sem classe social definida e em busca de um espaço que a representasse. Essa nova geração é formada por uma camada social intermediária, situada entre a nobreza e os camponeses. Frustrada em suas demandas, numa Rússia de poder autocrático, nasce a negação da autoridade e dos valores aristocráticos, tradicionais.
 
Desprezando o que pode ser cientificamente comprovado, Bazárov desdenha daquilo que no mundo moderno não tem utilidade prática, imediata, como as artes e da escola do Romantismo, temas admirados pelas gerações anteriores, travando debates e discussões inflamadas com aqueles que defendem outras ideias, como aquelas levadas a cabo com o tio de Arkádi, Pável Petróvitch, defensor da geração de 40.
   
Arkádi, discípulo de Bazárov, embora demonstre entusiasmo pelas ideias do amigo, vai, aos poucos, perdendo o encanto por ele, a ponto de, no final, casar-se, apesar do ataque que o amigo empreende contra o matrimônio, instituição legal, e a própria ideia de amor. 
O aparecimento de Ana Serguêievna Odínstova, espécie de mulher fatal, leva Bazárov, orgulhoso por enjeitar os ideais românticos, a atacar a mulher, considerando-a ser mesquinho, a colocar em xeque as suas próprias convicções, ao apaixonar-se, contra sua vontade, por ela. 
O seu niilismo parece não se sustentar diante de forças naturais. Desta forma, vive um paradoxo: defender suas ideias ou dar vazão aos seus sentimentos inconscientes. Fica, pois, sem ação, e, ao ceder ao duelo com Pável, mesmo que seja para sustentar seus ideais, sucumbe a uma instituição tradicional, alvo de sua crítica. Seu final só poderia ser melancólico, se batendo com dois modelos opostos.
 
Arkádi, por sua vez, é o próprio protótipo do homem novo. Foi capaz de reconhecer a incoerência de alguns posicionamentos retrógrados do amigo e identificar as falhas da geração paterna, daí obter sucesso. Representa a burguesia que vigorará na Rússia a partir da década de 1860. Une, por assim dizer, os ideais russos à prática. Nele está o amálgama do que há de melhor nos pais e nos filhos.
 

A prosa

Em “Pais e filhos” fica patente duas características importantes da prosa de Turguêniev e de sua maneira de compor: seu esforço por ser imparcial, deixando aos próprios personagens, por meio de suas falas e monólogos, apresentar seus traços, técnica própria da dramaturgia, e sua preocupação muito mais em criar personagens bem delineados, complexos, representativos de um tempo, e menos em fabricar tramas. Além disso, é evidente nele a preocupação com a forma, o cuidado com a linguagem e a busca por transformar o que escreve em arte.
 
Memórias de um caçador (1852), por exemplo, talvez seja, quando se tem em mente a perfeição das construções das frases e do estilo, a clareza e a simplicidade das construções, por uma pitada de beleza poética, sua obra-prima, além de, nela, sob o pretexto de apresentar as memórias de um personagem, denunciar a servidão onde morava é isso que se encontra nas entrelinhas das vinte e cinco histórias —, apresenta um quadro sócio-histórico da Rússia agrária, submetida ao poder despótico da autocracia.
 
TURGUÊNIEV, Ivan. Pais e filhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
______. Memórias de um caçador. São Paulo: Editora 34, 2017.
 
 

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