O DUPLO - DOSTOIÉVSKI

 


O Duplo é o segundo romance de Dostoiévski, publicado ainda no início de 1846. Não obteve o mesmo sucesso de seu romance de estreia. Conta o drama de Yákov Pietróvitch Golyádkin, um conselho titular, funcionário público, em fim de carreira, solitário e com profunda necessidade de se relacionar bem com seus amigos da repartição, ser reconhecido como uma pessoa de gestos nobres. 

Uma vez sozinho, passa a experimentar a instabilidade de sua posição, a imaginar-se perseguido por todos, criando fantasmas e ilusões que o atormentam, levando-o a total loucura.

Personagem central



O personagem central passa por grandes privações, mas tem um criado e costuma alugar carruagens para seus passeios pela cidade. Vive isolado e na solidão, numa angustiante carência de convívio social que procura preencher a todo custo. À toda tentativa de participar das reuniões sociais, sem ser convidado, se dar mal, piorando a sua posição e isolamento. 

É assim que, longo no início do romance, um fato se torna crucial para levá-lo à loucura. Eis que o conselheiro de Estado, seu antigo benfeitor, chefe da repartição onde trabalha, Olsufi Ivánovitch Beriendêiev, vai dar um baile para comemorar o aniversário de sua filha Clara Olsúfievna. 

Golyádkin se sente convidado sem o ter sido e ainda por cima pretendente à mão da moça. Para não fazer feio, aluga uma carruagem e um cocheiro, novo uniforme, libré para o seu criado e prepara-se para o jantar de gala.

Toda a narrativa se estrutura com base nos acontecimentos que se seguem ao baile e na dicotomia entre, de um lado, a casa dos Beriendêiev, símbolo da riqueza, dos valores aristocráticos e da alta burocracia estatal, e, de outro, o mundo de Golyádkin, povoado por pequenos funcionários iguais a ele, no qual procura manter valores como autoestima, amor próprio, sinceridade, retidão de caráter, franqueza e fidelidade.

Nutrindo a ilusão de penetrar no mundo da alta sociedade, ser respeitado e reconhecido, já que acumulara uma boa quantia em dinheiro, fruto de suas privações, acredita ser aceito nos salões dos Beriendêiev, mesmo sem ter sido formalmente convidado.

Chegando à casa dos Beriendêiev, é barrado à porta. No entanto, penetra na casa pelas portas dos fundos. Vive algumas situações embaraçosas e cômicas até ser expulso pelos criados sobre os olhares reprovadores de todos. 

Depois dessa humilhação, sai perambulando pelas ruas de São Petersburgo sob um tempo arrasador. A partir de então passa a sofrer alucinações a ponto de conversar com sua própria consciência, o seu duplo.

O duplo



A partir desse momento, isto é, do aparecimento de seu duplo, a novela ganha nova dinâmica. Intercalam-se a fala do narrador com os diálogos entre Golyádkin primeiro e Golyádkin segundo. Desta forma, pouco a pouco, a sua personalidade mórbida se revela e toda a sua angústia e necessidade de ser aceito socialmente é revelada.

Nos diálogos com o seu duplo, isto é, com sua consciência doentia, revela-se as grandes contradições de Golyádkin e as censuras às atitudes de seu duplo. 

Segundo Paulo Bezerra, “As palavras usadas pelo senhor Golyádkin no diálogo com seu duplo, contrárias aos princípios éticos que ele mesmo professava, acabarão sendo fatais para ele, pois o outro as usará para desmoralizá-lo aos olhos dos colegas de repartição e dos superiores. 

O fantástico duplo que o senhor Golyádkin criara em seu imaginário doentio para realizar todos os seus sonhos, torna-se de fato seu inimigo mortal e acaba por substituí-lo de verdade em todos os seus anseios de ascensão funcional, amizade dos colegas, reconhecimento e gratidão dos superiores e acesso aos salões da alta sociedade”. 244

Ao contrário do herói de Gente pobre, que vive numa penúria opressiva, Golyádkin sofre de uma paranoica ambição, achando merecer um posto maior na repartição pública. Neste ponto, quebra-se a conexão entre O duplo e Gente pobre.

 Há um deslocamento do foco da pobreza e a luta do personagem para manter, e conservar a sua dignidade, para os aspectos psicológicos e internos. O grande esforço de Golyádkin é para se autoafirmar entre seus amigos da repartição e nos espaços sociais, onde circulavam a alta burocracia e a nobreza de São Petersburgo. 

No entanto, tal esforço levará o herói da novela a confrontar-se com a ordem social vigente. O contraditório parece ser a sua busca obstinada pela ambição ao mesmo tempo em que a despreza. 

O personagem central vive outra constante tensão entre imaginar-se um herói conquistador — alguém importante, daí sua obstinada vontade de ser mais do que o que é, vivendo em um apartamento espaçoso, ter um criado e sair de carruagem e bem vestido — e sua incapacidade de exercer esse papel, já que é um medroso.

Duplicidade



São temas do romance a duplicidade e os desdobramentos da personalidade, que se mantêm em outras obras de Dostoiévski, como em Crime e castigo, O idiota, O adolescente e Os irmãs Karamázov. 

Para Paulo Bezerra, pode-se considerar O duplo como o laboratório de todos os grandes romances dostoievskianos. Também, a novela apresenta traços autobiográficos, levando em conta que Dostoiévski sofria de problemas psíquicos (epilepsia). 

O próprio autor sofria com sua duplicidade de personalidade, o mesmo mal que acomete Golyádkin. Para Joseph Frank, “Goliádkin é o ancestral de todas as grandes personalidades divididas de Dostoiévski, sempre confrontadas com seus duplos ou quase-duplos”.

O fenômeno do duplo serve para confrontar o herói da novela com tudo o que não suporta ver em si mesmo. E desde esse momento, Golyádkin luta, inutilmente, para evitar ser substituído, na repartição, pelo duplo, até mergulhar completamente na loucura. 

O duplo, que inicialmente se faz amigo de Golyádkin e descobre seu passado e suas fraquezas, o traí. Na repartição, passa a obter sucesso. No mundo social, aparece bem próximo entre aqueles que Golyádkin busca ser  reconhecido e aceito. 

Na maior parte do tempo, o duplo, segundo Joseph Frank, “reflete ao mesmo tempo os desejos reprimidos do subconsciente do senhor Golyádkin e materializa seus subsequentes sentimentos de culpa”.  

Personalidade reprimida



O Duplo de Golyádkin representaria os aspectos reprimidos da sua personalidade que ele não quer enfrentar, e que só o enfrenta, de forma dramática, quando perde o controle sobre sua consciência. 

Na repartição, Golyádkin faz de tudo para não ser confundido com o seu duplo, cujo comportamento adoraria imitar, mas que aprendeu a considerar moralmente inadmissível.



“Na primeira parte, a ‘ambição’ do senhor Goliádkin domina seus sentimentos de inferioridade e de culpa e consegue mantê-los sob controle. O prosseguimento da ação mostra-o na tentativa vã de afirmar-se num mundo que o rejeita. Mas o processo se inverte no momento em que o duplo aparece; Goliádkin procura então demonstrar de todas as maneiras possíveis que é um subordinado dócil e obediente às ordens das autoridades que governam sua vida como se fossem, literalmente, a palavra de Deus”. 

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O duplo: poema petersburguense. São Paulo: Editora 34, 2013.



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