Entrei em contato com Orhan Pamuk em 2010, quando li seu romance “O livro negro”. A leitura dessa obra me causou profunda impressão. Lembro-me ter ficado extasiado, quase em choque, com exagero, é claro, tal foi a impressão que me causou.
Mais tarde, em 2013, creio, reli-o e escrevi resenha sobre esta instigante obra. Apresento abaixo, aos meus ínfimos leitores, um resumo do artigo que produzi.
Para os amantes da boa leitura, nesse mundo carregado de futilidades, frivolidades, sugiro não morrer antes de lê-lo.
Hoje, Orhan Pamuk é um dos meus autores contemporâneos preferidos. Principal romancista turco, reconhecido mundialmente, foi premiado, em 2006, com o prêmio Nobel de literatura.
Autor de vários romances, dentre eles “O Livro negro”, tem um estilo de escrita que muito me agrada, com suas longas descrições de locais e sensações da velha Istambul, que me lembram o estilo de Marcel Proust na sua obra monumental Em busca do tempo perdido.
O livro negro
O Livro negro é romance do escritor turco Orhan Pamuk. A trama gira em torno da busca do jovem personagem Galip, um advogado casado com sua prima, para encontrar a sua esposa: Rüya, que desaparece de casa sem motivo deixando apenas um ambíguo bilhete de despedida. Todo o romance se desenrola com a busca desesperada de Galip, transitando pelas ruas e espaços da cidade de Istambul, para descobrir o paradeiro da esposa.
Ao longo do romance, a busca de Galip é dividida com às crônicas diárias de um famoso jornalista, Celâl Salik, meio-irmão de Rüya, publicadas diariamente pelo jornal Milliyet.
O cronista que vive se escondendo, para evitar ser localizado, escreve sobre temas os mais vaiados, que vão desde aqueles que falam da política, Gângsteres, memórias pessoais, poetas, religião e o hurufismo, uma seita antiga que acreditava ser possível encontrar a essência de nossas vidas em letras escritas por Alá em nossos rostos, passíveis de serem decifradas.
A trama deixa implícita que Rüya estaria com seu meio-irmão e que nas crônicas escritas por Celâl apareciam pistas e indícios que permitiriam a Galip descobrir onde eles estavam escondidos.
Após descobrir o apartamento onde supostamente o cronista se escondia, se instala ali e passa obsessivamente a ler suas crônicas e anotações. As pistas que acredita encontrar nestes escritos o levam aos mais distantes e instigantes recantos da velha Istambul, talvez o personagem principal, não declarado do romance.
Pelas ruas da capital da Turquia, se depara com um mundo aparentemente cheio de enigmas, armadilhas, surpresas e locais que se parecem muito mais saídos das Mil e uma noites, frutos da imaginação do autor, do que reais. Esses enigmas se encaixam na narrativa, levando de uma história a outra, num crescendo e em um vai e vem instigante.
Em algum momento do romance, o infeliz advogado Galip, sem conseguir solucionar o enigma, chega à conclusão de que para encontrar sua esposa, precisa compreender como Celâl pensa. Conforme o romance flui, assim como as leituras das cônicas de Celâl por Galip, este cada vez mais vai se tornando parecido com o cronista a ponto de acreditar ter se transformado em outra pessoa.
Em resumo, para descobrir o paradeiro da esposa e de seu meio-irmão compreende que teria de se transformar em outra pessoa. É assim que, aproveitando-se do fato de que o primo também desapareceu, ele passa a escrever suas crônicas usando os seus mesmos artifícios literários e o estilo.
Desta forma, Galip assume a própria identidade de Celâl e vive um conflito entre ser ele mesmo ou tornar-se outra pessoa. Por outro lado, assumir a identidade de seu primo deixa-o vulnerável aos muitos inimigos do jornalista, capazes de cometer assassinato.
O sentido do Romance
Na verdade, o romance foi uma forma, creio, que o autor encontrou para discutir a questões que o inquietam.
Desta forma, Pamuk é ao mesmo tempo o cronista Celâl, permitindo-o discutir a perda da memória ou das raízes do povo turco, sua vontade de querer ser outra pessoa e não ele mesmo, vivendo entre a perda de suas raízes, a fantasias de ser ocidental, e Galip, cuja busca é pelas raízes perdidas de seu povo e não por sua esposa.
Transformando-se em Galip, esse artifício permite ao autor discutir a ocidentalização da Turquia e a frágil identidade de seu povo, que oscila entre duas culturas: a cultura oriental, em decadência, e a cultura ocidental, em ascensão, marca da Turquia moderna.
As vozes de Celâl e de Galip são as próprias vozes de Orhan Pamuk, que só consegue ser ele mesmo buscando ser outra pessoa.
Só encontra a felicidade quando se afasta do muno real e conta/escreve histórias, cria personagens, se utiliza de outras histórias e autores para construir novas histórias, como se a literatura permitisse a ele enveredar por um labirinto complexo em busca de sua saída, tal como se mostra o livro em questão.
Celâl e Galip são o duplo do autor. Ele se utiliza dos personagens para falar de si mesmo, da literatura e para falar da cidade.
Como no livro Istambul: memória e cidade, Pamuk fala de uma coisa apenas para chegar a outra coisa. Quando fala de si é para falar da cidade e quando fala da cidade é para falar de si, como se ele não vivesse sem sua memória, que se confunde com a cidade ou como se a cidade não pudesse viver sem ele.
Em “O livro negro”, Pamuk parece brincar com o leitor, construindo sentidos ocultos em sua escrita como que tentando levá-lo a descobrir um significado implícito capaz de antever o desfecho da história.
Na verdade, o que está por trás do mistério é o próprio autor. A discussão sobre os manequins permite ao romancista refletir sobre a ocidentalização, momento em que os turcos não queriam mais ser turcos, querendo parecer-se com outras pessoas, contribuindo para que perdessem a sua própria essência ou as letras ocultas em seus rostos, que só poderiam ser lidas pela cultura: seus jeitos de ser.
Os manequins preservados são o próprio passado relegado para os subterrâneos. São a própria essência perdida dos turcos. Os manequins, finalmente, representam tudo aquilo que os turcos não mais queriam ser: eles mesmos, e, por isso, ninguém mais se interessava por eles.
Com os manequins relegados ao esquecimento, a essência de Istambul está em seu subterrâneo e à medida que se aproxima da superfície, que dizer, do ocidente, mais se esquece ou se perde a sua essência.
Quanto mais a cidade se ocidentaliza, mais os turcos perdem sua identidade, relegada apenas ao passado e à memória, simbolicamente representadas pelos manequins que guardam os gestos e rosto dos verdadeiros turcos.
Por que a ocidentalização, a vontade de ser outra pessoa, seduzia tanto? Porque ser outra pessoa fazia esquecer a sua essência, esquecer sua própria tristeza, da derrota e inquietações de seu mundo.
Fazia esquecer todas as lembranças e toda a melancolia. Voltar-se para o ocidente era perder a memória, a melancolia que é a própria essência da cidade, a derrota, a pobreza. Isso é representado pelo episódio em que Galip, em sua busca pelas ruas da cidade, observa as pessoas que saiam de um cinema: “(...) o que se lia em todos aqueles rostos era a serenidade de quem consegue esquecer sua própria tristeza mergulhando totalmente numa história. Todas aquelas pessoas encontravam-se imersas no miolo da história em que se tinham instalado com tanta vontade. O espírito delas, havia muito esgotado pelas derrotas e inquietações, agora tornara a se preencher com uma história complexa, que as fazia esquecer todas as lembranças e toda a melancolia”. P. 258
A discussão sobre o olho invisível que nos olha parece representar a própria essência ou a melancolia da Istambul ou dos bairros secundários, que permite aos turcos perceber que eles não conseguem ser eles mesmos.
Transitar pelos bairros turcos, para Pamuk, permite a população perceber sua essência perdida ou em transformação. Permite, finalmente, o contraste entre o homem que se ocidentaliza e a cultura oriental, que parece lutar para permanecer a mesma. Quando Celâl, após escrever sua crônica, resolve perambular, como um flaneur pelas ruas da velha Istambul e sente falta de alguma coisa, é a sua própria essência que lhe escapa.
É por isso que não consegue ser ele mesmo e nem o outro. Aqui a discussão é existencialista: como ser eu mesmo ou tornar-se outro. Ninguém consegue ser ele mesmo e nem outro, a não ser como literato. É a literatura que permite ao escritor ser ele mesmo e ser outro ao mesmo tempo. Parece ser isso que Pamuk quer nos dizer...
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