Vou falar do Seu Henrique, que minha mãe dizia ser nosso parente, lá por longe. Era freguês assíduo do comércio de meu pai. Pedreiro, construiu muito para nosso pai.
Seu Henrique não era alcoólatra, bebia raramente, mas quando bebia... costumava interpretar um papel de “valentão”, mudava de personalidade, gesticulava, falava alto, parecia outra pessoa.
Num outro dia, aparecia manso, amigo de todos, cordeirinho, voltava a ser “um homem de paz”. Era mulherengo, mas discreto.
Além da esposa, a principal, possuía outra mulher, com quem teve uma filha. Ele sempre gostou muito de mim, me contava suas histórias.
Quando adoeceu, depois de um AVC, eu continuei a visitá-lo, a pedido de seu filho adotivo, o “Fravinho-oreínha”, um rapaz “muito gente-boa”, que nasceu sem a orelha esquerda, e era muito simpático, amigo de todos, e que morreu prematuramente em um acidente de moto.
Um dia Flavinho me procurou, quando eu estive no Ipu, visitando minha família. Ele me disse: “Raimundo, deixe eu lhe pedir uma coisa! Quando você vier no Ipu, por favor, venha visitar o meu vô, pois ele gosta muito de você! Você me promete isso?” Eu prometi.
Certa vez eu estava no centro de Camocim, quando liguei (de um orelhão) para minha mãe, e ela me deu a terrível notícia de que meu amigo Flavinho-Oreínha havia morrido em um acidente de moto! Eu fiquei tão abalado que comecei a chorar, ali mesmo, na praça! Eu cumpri a promessa, sempre que podia eu visitava meu amigo Henrique, até que a morte veio levá-lo! Que Deus os tenha!
Seu Henrique me contou, quando moço, foi trabalhar em obras no Rio de Janeiro. Lá, certa vez, uma madame de Copacabana teve sua cadelinha “Poodle” atropelada por um carro. Aos gritos, a madame correu, pegou a cadelinha nos braços, e disse: “Ôooo, meu Deus, porque você deixou isso acontecer com a minha cadelinha? Melhor seria se tivesse acontecido com esse ‘paraíba’?”. Disse isso apontando o dedo para Henrique, que estava ali perto.
Ele ficou chocado, mas entendeu que, para aquela sociedade, a vida de um “trabalhador nordestino” valia menos do que a vida de um cachorro!
Naquela mesma época meu pai e meu avô, Chico Doca, também estiveram no Rio, trabalhando como peão.
O Nordeste era um verdadeiro flagelo, não havia emprego, e muitos jovens iam e vinham para lá, para ganhar a vida. As elites do Sudeste se aproveitavam disso, para extrair daí mão de obra barata, contratando garçons, pedreiros, serventes-de-pedreiro, porteiros, marceneiros e todo sorte de trabalhadores a preços insignificantes.
O uso da mão de obra dos nordestinos — chamados de paraíbas — fora algo tão comum e natural que até mesmo um presidente da República — Juscelino Kubitschek — articulou um “Plano de Metas” para explorá-la na construção de uma nova capital para o país: Brasília.
Outra história foi essa: Henrique estava no cume de uma escada de duas bandas, fazendo um conserto na tubulação de gás, em Copacabana. O gás estava vazando muito. Um jato de gás estava sendo ejetado em seu rosto. Ele precisou de ajuda, para consertar o cano; então chamou por Zé, seu ajudante na obra.
— Vem cá, Zé, segura o cano aqui, pra eu colocar o novo.
E lá vai Zé, com um cigarro no bico! Segurou o cano com as suas mãos, e foi aí que Henrique viu o cigarro na boca de Zé. Henrique não sabe dizer como, nem por que, aquilo não mandou tudo pelos ares. A explosão seria catastrófica. Os dois morreriam queimados
— Esse Zé é um tremendo filho da puta! Como é que ele vai mexer com gás fumando um cigarro?
Não havia muito o que fazer. Não havia tempo para alertar o bobão. Então, como um “cabra-macho”, Henrique meteu a mão na cara de Zé, esfregando o cigarro com força em seus lábios. A ação apagou o cigarro, mas queimou a mão de Henrique e os “beiços” de Zé. Henrique gritou, dizendo:
— Tu é doido, seu filho de uma égua! Tu vai matar nós dois aqui em cima!
Seu Henrique contava essa história com muita graça. Gesticulava, cerrava os lábios, e simulava o ato de esfregar e apagar um cigarro nos beiços de Zé, em cima de uma escada, a cinco metros do chão, numa obra em Copacabana. Todos riam de sua interpretação.
Mais uma história de Henrique: certa vez estava ele em cima de um lajeiro, descascando uma cana para chupá-la, junto com um amigo. Eles descascavam, mordiam e chupavam a cana, que era muito doce. E foram nesse serviço a manhã toda. E aí, ao morder a cana, a mandíbula do amigo — que eu vou chamar de Chico — desarticulou-se. E Chico apavorado, com a boca escancarada, partiu para cima de Henrique, para lhe pedir ajuda.
Henrique achou muito estranho: o amigo parecia um vampiro de um filme de terror, com os olhos arregalados, a boca escancarada, gemendo e grunhindo feito um louco. Ele não sabia o que estava acontecendo, só desconfiou que a mandíbula de Chico havia saído do lugar.
Mas aí, o que fazer? Teve uma ideia, e a pôs em ação, enquanto Chico se agarrava com ele e gemia feito um louco: então Henrique acertou um soco certeiro “na taba do queixo de Chico”! Foi um soco de baixo para cima, que levantou os pés de Chico do Chão. Parecia um fosse Mike Tyson.
— O remédio de doido, é doido e meio!
Dizia isso, enquanto todos riam, e ele simulava o soco com a mão. Depois disso, disse que Chico ficou uma semana acamado. até desinchar o queixo. Mas o remédio serviu.
Terceira história: O “chá de pinto”. Disse Seu Henrique que certa feita estava ele e outro sujeito, derrubando uma grande árvore lá pelo sertão do Manuíno, para fazê-la de “linha” de uma casa, que eles estavam construindo.
A árvore tinha muitos galhos, para além do tronco principal. E eles tinham que aparar tudo, para deixá-la reta. Os dois homens faziam o serviço cada um com um machado, um de costas para o outro. Estavam todos suados, sob o sol da tarde, quando o companheiro de Henrique, sem querer, acertou uma machadada — com as costas do machado — bem na nuca de Henrique.
Caiu desmaiado, ficou desacordado por bem mais de meia-hora. E aí tiveram a seguinte ideia: um tio de Henrique disse:
— Peguem aí um pinto, no terreiro, e tragam ele aqui.
E foram ao terreiro, pegaram um pinto, já crescidinho, de uns 45 dias. Enrolaram o bicho em um pano velho, colocaram no pilão, pisaram fortemente, dando-lhe umas dez ou quinze pilãozadas. O pinto ficou só o sumo. Então, eles pegaram e torceram o pano, fazendo descer um caldo escuro, que foi colocado dentro de uma garrafa de refrigerante.
Abriram a boca de Henrique, colocaram a garrafa, e o fizeram beber aquele húmus repulsivo. Henrique dizia que acordou no meio do tratamento, sem saber o que estava se passando. Atordoado, sendo contido por quatro, ou cinco amigos e parentes, um deles segurando uma garrafa em sua boca, e mandava ele beber insistentemente:
— Bebe Henrique, bebe, se não tu vai morrer.
E ele bebeu sem entender nada, e até a última gota. Só depois pôde entender o que estava se passando, mas já era tarde demais, já tinha engolido o “chá de pinto”, e estava curado da grande pancada na cabeça. Depois ele dizia, com muito riso:
— Onde já se viu? Pinto pisado num pilão servir pra pancada? Só coisa de matuto mesmo! — e ria um riso frouxo e bonachão, riso de sertanejo, enquanto dava uma pitada em seu cigarro de fumo Rocha.
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