Vez ou outra, quando eu voltei do Rio, ia com
Sebastião em seu caminhão, juntar esterco bovino pelos currais das fazendas do
sertão da Hidrolândia, Ipueiras, Ipu e suas imediações, e entregá-lo na Serra
da Ibiapaba. Após adquirir o dinheiro
necessário para comprar um caminhão trabalhando feito louco no Rio de Janeiro,
Sebastião passará a viver de coletar estrume nos currais das fazendas do
sertão, e vendê-lo nas plantações de tomate da Serra Grande. Fez isso por anos,
e dessa forma honesta e sofrida criou suas duas filhas maravilhosas: Sonayra e
Letícia.
Sebastião: “Eu sai às três ou quatro horas da
madrugada. Pegava o caminhão na garagem... acordava os homens... ia na Hidrolândia,
no Ararendá, na Ipaporanga, na Ipueiras, na Nova Russas, no Tamboril, na
Independência, em Tauá...! Por todo canto eu andava, pelas fazendas...
procurando estrume de gado... para revender na Serra. Eu vendia estrume pros
plantadores de horta do Ipu, da Guaraciaba, do Tianguá, da Ibiapina, do São
Benedito...! Quando era de noite eu tava em casa! Pronto para fazer tudo no
outro dia! Era rotina de doido! Não era trabalho pra caboco mole não!”
Sebastião reunia uma tropa de homens, cabocos
fortes e dispostos do Cafute, que ele recrutava para essa tarefa árdua, e
passava o dia todo fora, pelo mundo, comprando e vendendo estrume de gado. Não
era brincadeira: sair de casa às três da madrugada, estar dentro dos currais de
Nova Russas antes do dia amanhecer, encher o caminhão antes do meio dia, fazer
uma breve parada para o almoço no Sucesso, ir descarregar o esterco em São
Benedito ou Guaraciaba, e (se tiver sorte) está de volta a seu lar antes do
anoitecer! Só homens de ferro aguentariam a rotina que Sebastião aguentou!
Certa vez, andado nessas aventuras, o bendito
do caminhão quebrou, entre o Ipu e o Ararendá, e ficamos por lá, no meio do
nada, a procura de um mecânico até duas horas da tarde, sem comer, e com água
racionada. Todos estavam famintos! Minha voz estava falhando, e minhas mãos
tremiam de fome. Lá pelas três horas da tarde, usando suas amizades na região,
Sebastião conseguiu um “rango” para todos nós, ele, eu e seus trabalhadores
(que era uns cinco ou seis homens). A dona da casa – uma casa de alpendres
largos e peitoril acolhedor - nos serviu uma bacia grande, cheia de farinha,
com uns vintes ovos mexidos..., sem talheres..., sem pratos..., sem
cadeiras..., e sem regalias! Quando a Senhora assentou a bacia no terreiro,
esses homens caíram em cima da farinha com ovos como um bando de urubus!
Formaram um círculo, e comiam com as mãos! Cada peão metia às mãos na farinha,
e jogava uma “mucheia” na boca! E eu, ali perto, vendo que não iriam deixar
nada para mim, me misturei aos caboclos, meti minhas mãos por cima dos ombros
deles, e joguei aquela refeição improvisada na boca! E repeti o processo três
ou quatro vezes, até que a bacia se esvaziou completamente!
Uma jovem senhorita, filha da dona da casa,
trouxe-nos um galão de água, com alguns copos, e nós bebemos aquela água
barrenta sofregamente. A moça tinha grandes olhos azuis... parecia uma
portuguesa do além-mar... Sorriu! Era um sorriso envergonhado, de gente
simples! É pena vê-la gastar sua vida e sua juventude ali! “vá embora desse
lugar enquanto ainda pode, minha jovem”! Mas não disse nada, apenas pensei.
Noutra ocasião, Sebastião deu uma carona para
um amigo, que ele havia encontrado de bicicleta, numa estradinha de chão,
localizada nos interiores entre Ipu e Hidrolândia, ou em outro lugar qualquer,
que eu não saberia dizer. O homem foi na boleia, deixou sua bicicleta em cima,
e eu tive que ir na carroceria, junto com a peãozada estravagante! Lá pelas
tantas, um dos trabalhadores de Sebastião, um caboclo forte, e baixo, de nome
Messias, não tendo mais o que fazer, pegou a bicicleta do homem da boleia e
montou nela, com o automóvel em movimento! Imagina a cena: um caminhão em
movimento, em uma estradinha de cão, e um cabra maluco montado em uma bicicleta
em cima de sua carroceria! Eu vi que aquilo era imprudente da parte do rapaz,
mas nada disse, pois ele era de pouca conversa (assim como eu). Eu agarrado ao “gigante” (peça da carroceria
do caminhão), via Sebastião e seu amigo conversando alegremente na cabine. E de
repente, meu mano adentrou um trecho bem conservado da estrada, um trecho só
com areia fofa e lisa, e pisou fundo no acelerador. Todos nós – eu e os
trabalhadores – tivemos que nos agarrar firmemente no gigante da carroceria do
caminhão. E aí eu me lembrei de olhar para Messias, que estava atras, montado
na bicicleta! A tempo de vê-lo em maus lençóis! O caminhão trepidava...
sacolejava... e dava solavancos, como um touro de rodeio! O rapaz não tinha
como descer da bicicleta! Para alguém ficar em pé... em cima da carroceria de um
caminhão em movimento... já não era tarefa fácil! Imagina fazer isso estando
encima de uma bicicleta!
Com minhas duas mãos agarradas firmemente nas
grades de ferro do “gigante” , vi, de canto de olho, o momento exato em que o
homem e a bicicleta caiam do alambrado da carroceria! E... não pensei duas
vezes! Como um raio, soltei uma das mãos... e segurei o rapaz pela canela! Eu
era muito forte! Um atleta de academia...! A cena era dramática: com minha mão
direita, eu segurava no ferro da carroceria do caminhão... com a esquerda eu
segurava um homem pela canela! Eu sei, parece mentira! E pareceu também uma
cena de Indiana Jones, ou de Arnoud Schwarzenegger, em “Comando para Matar”!
Mas foi a mais pura verdade! E ele..., tendo a bicicleta entre suas pernas, e estando
de cabeça para baixo... ficou dependurado na lateral do carro, que corria a
grande velocidade na estradinha empoeirada, entre o Ipu e a Hidrolândia!
Eu não sei como fiz aquilo! O cabra era pesado!
Havia o risco de nós dois sermos arrastados para fora do veículo em movimento!
Ao mesmo tempo, os trabalhadores gritavam, desesperados, pedindo para Sebastião
parar o carro! Mas ele não os ouvia! Enquanto isso, o rapaz estava dependurado,
de cabeça para baixo, e ramos verdes de salsa e de ritirana lhe chicoteavam o
rosto, a pouco mais de meio metro do chão! Eu sei, a cena parecia saído do
Indiana Jones, mas é a mais pura verdade! Depois de alguns minutos – que para
mim pareceram uma eternidade – Sebastião ouviu os gritos e parou. Os outros
homens socorreram o rapaz da bicicleta, puxando-o para cima..., ele estava
pálido como um maracujá. É provável que eu tenha salvo a vida daquele cabra!
Ele nunca me agradeceu formalmente... era rude demais para isso.
Outra ocasião, depois do caminhão ficar o dia
inteiro no prego, em algum lugar depois de Nova Russas, almoçamos lá pelas duas
da tarde, em uma fazenda de uma família amiga de Sebastião. Ele tinha amigos em
uma vasta área, que tendo o Ipu como centro, se estendia pela Hidrolândia,
Santa Quitéria, Ararendá, Ipueiras, Charito, Nova Russas, Tamboril, Monsenhor
Tabosa e outros lugares (do sertão, de onde ele coletava esterco), passando por
outros lugares; e ia para a Serra Grande, passando por Guaraciaba, São
Benedito, Ibiapina, Tianguá, Carnaubal, Croatá e Ibiapina (lugares para onde
ele levava o adulbo). Embora quebrado, o caminhão estava carregado, aguardando
o conserto, no meio do nada, enquanto eu e os trabalhadores esperávamos no
alpendre da fazenda, Sebastião havia saído, com o dono da casa, atras de um
mecânico que morava por aquelas bandas. Ficamos no alpendre da casa, alguns
sentados em cadeiras rudes cobertas com couro de boi, outros deitaram no chão,
dormiram. Eu fiquei ora sentado no peitoril, ora na cadeira, ora no chão,
sempre ouvindo atentamente as conservas de alguns vizinhos, que por lá
apareceram.
Lá pelas sete horas da noite o caminhão ficou pronto... e todos nós subimos em sua carroceria carregada. Havia uma família – pai, mãe e filha – que foram na cabine com Sebastião, por isso eu tive que ceder meu lugar para eles, e ir em cima da carga de esterco, com os trabalhadores. Lembro que entre eles estava Carlito Cocada, um amigo de longa data, os outros eu não saberia dizer os nomes.
E partimos... sobrecarregados.... pela
estradinha de chão que ia nos conduzir de volta ao Ipu. A carga estava enorme,
e foi coberta por uma lona suja, amarrada com cordas possantes. Com certo nojo,
eu me deitei sobre a lona e sobre o esterco..., e segurei firmemente em duas
cordas, para prevenir qualquer acidente. Uma queda daquela altura significaria
morte certa. Na escuridão completa, eu tive a exata sensação de flutuar no
espaço, como um asteroide entre as estrelas! Vi o braço curvado da Via-Láctea,
onde um bilhão de sóis ardiam..., e onde outros mundos giravam em torno de
outras estrelas! (Haveria vida ali, com criaturas que nos olham de lá, neste
exato momento? Ou estamos sozinhos no universo, e seria a humanidade a única
espécie inteligente, capaz de se fazer essas perguntas?). Vi a Estrela D’alva
(o Planeta Vênus) flutuar no espaço..., e vi Marte magnífico no horizonte! Um
dia a humanidade irá colonizar Marte? Um dia plantaremos tomates e cenouras por
lá, e haverá quem leve esterco para essas plantações? Tomara que eu esteja vivo
para ver! Ver os tomates de Marte! Ver a humanidade se expandir pelo espaço!
Senti o caminhão balançar... mas era como se fosse minha alma a balançar no
vazio do espaço... em um dos braços espiralados da Via-Láctea! Vi as Três
Marias..., vi Órion..., vi o Cruzeiro do Sul..., vi Ursa Maior! E vi a galáxia
de Andrômeda, que um dia irá se chocar com a nossa galáxia! Me senti
desprendido de meu corpo..., flutuando no espaço..., como um raio de luz...! Eu
não tenho palavras para descrever aquela sensação! A sensação de flutuar entre
a estrelas... de poder quase tocar em Marte... em Vênus, nas estrelas... em
Andrômeda... em Ursa Maior! De repente, no horizonte... a lua apareceu
sorrateira... acabando com a “festa”! Chegamos no Sucesso... ou foi no
Ararendá?.... E eu voltei para a Terra..., numa fração de segundo..., na
velocidade do pensamento... para uma estradinha de chão... para o topo da carga
de esterco... em um caminhão em movimento... entre o Ipu e a Hidrolândia... Ali
eu vi a face de Deus... experimentei uma grande plenitude! Uma epifania! Eu me
tornei parte do universo... e Ele se tornou parte de mim...! (Deve ser isso que
os Budistas chamam de “Nirvana”!).
Raimundo Alves
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