Seu João Bandeira (o velho) era um senhorzinho
que morou ao lado do bar do Pirão. Apesar de já ter quase noventa anos, seu
cabelo nunca ficou branco, dando a ele um aspecto bem mais jovem.
Sua velhinha, de nome Iracema, desenvolveu
câncer no útero, e veio a falecer passando por prolongada agonia. O velório foi
rápido... Depois que sua companheira se foi..., o velhinho ficou triste...
pelos cantos, como um passarinho entrevado.
No início não era capaz de fazer sequer uma
xícara de café! Tudo era ela que fazia! Mas... aos poucos, foi se acostumando!
Aprendeu a lavar, a cozinhar, a arrumar a casa... Ficou sozinho, naquela casa
enorme... Diziam os vizinhos, que em altas horas da noite, ouvia-se ele
conversando com sua velhinha: “Iracema, minha velha, hoje eu fiz cuscuz... com
banha de porco!”. “Iracema, minha velha, o Juquinha me escreveu do Rio, disse
que vem me visitar!”. “Iracema, minha velha... quando é que Deus vai me levar,
pra junto de ti?”. E ouvia-se, vez ou outra... em alta madrugada, alguém
varrendo a casa, lavando a louça, esfregando o chão do banheiro..., em meio a
um gemido agudo e angustiado, de alguém cantarolando:
“Meu primeiro
amor tão cedo acabou
Só a dor deixou
neste peito meu
Meu primeiro
amor... foi como uma flor
Que desabrochou
e logo morreu...
Nesta solidão
sem ter alegria
O que me alivia
são meus tristes ais...
São prantos de
dor... que dos olhos caem
É porque bem sei... quem eu tanto amei... não verei jamais... “
Um dia, o filho de Seu João Bandeira veio
visitá-lo, e quis levar o pai para a Serra, para passear por lá. E então o Seu
João apareceu na bodega de meu pai, procurando alguém que pudesse dormir em sua
casa, para que ele pudesse fazer sua viagem, sem o risco de ter a casa roubada.
Perguntou a um... perguntou a outro... e ninguém quis “fazer-lhe esse favor”!
Todos tinham uma desculpa: “Vou estar ocupado, preparando uma viagem para
Sobral”, “Estou meio adoentado, não posso ir não!”, “Não posso, pois tenho que
acordar de madrugada, para ir trabalhar”! Ninguém se dispôs a ir... até que o velhinho
olhou pra mim e disse, e você meu, bichim, não pode ir não? E eu, para “mostrar
que era macho”, disse: “É claro, Seu João! Pode contar comigo!”.
Dizem os vizinhos, que de vez em quando, ainda
se ouviam os gemidos - “aaaaaiiiiiiiiiiii” – de Dona Iracema agonizando na
alcova! Meu pai e seus amigos se entreolharam. Devem de ter pensado, “Esse
Raimundim é danado mesmo! Vai encarar sozinho a casa do véi João Bandeira!”.
Essa foi uma das poucas ocasiões que senti que meu pai estava orgulhoso de mim:
“Meu filho é cabra macho! Não tem medo de nada!”. O que eu não tinha era fé na
existência dessas cosias do outo mundo! Desde muito novo, eu sempre soube que
esse negócio de “alma penada” não existe! Era tudo fruto da imaginação fértil
desses matutos supersticiosos! Mas não vou mentir, lá no fundo, eu tinha medo
sim, dessas coisas da superstição! Por isso, repeti para mim, “esse negócio de
‘alma penada’ não existe! É só coisa da nossa imaginação”!
Seu João me entregou a chave... e foi sua
viagem. Embora eu tivesse apenas quinze anos, a chave me fez se sentir um homem
adulto, responsável! Seria perfeita..., se eu tivesse uma namorada... altas
horas da noite... íamos fazer como os gatos no cio (mas com discrição)! Naquela
noite, eu fiquei até mais tarde no bar do Pirão, que essa ocasião era chamada
de “a Marmita”, pois era o local onde Doutor, Marconi e Manoel levava as
namoradas para “o abate”!
O assunto foi a “minha coragem, de ir dormir
sozinho na casa mal-assombrada, onde a alma de uma velha aparecia por lá”! Eu
estava orgulhoso, arrotando “macheza” e “virilidade”: “Ora, essa conversa de
alma penada é cosia de gente medrosa! Não existe não! É só os gatos namorando
de noite, quando estão no cio!” Os colegas resmungavam “Não sei não! Se fosse
eu... eu num dormia lá sozinho não!”. Depois das vinte e duas horas, todos
foram dormir, e a Marmita fechou... só me restou pegar a chave... abrir a
porta, e adentrar a casa mal-assombrada! Teve até quem insinuasse (Marconi) que
eu “deveria está com medo, só que não queria admitir!”. Era verdade, mas
admitir isso seria minha completa desmoralização! E lá se foi eu... Abri a
porta... e adentrei as trevas... todas as luzes da casa estavam queimadas,
menos a luz da cozinha, a única que funcionava! Na alcova havia um breu tão absoluto,
que nada se podia ver lá dentro! Só as trevas! Só a escuridão..., e um vulto
estranho, de um homem alto, de pé..., me observando... de dentro da alcova!
Passei pelo corredor apreensivo... com uma tora de jucá nas mãos! “Se a alma
daquela velha safada vier, eu vou moe-la no cacete!”. Cheguei na cozinha...
liguei a luz! Fui ao banheiro... fiz xixi. Voltei rápido, sempre com o jucá na
mão, pronto para usá-lo: “Se a alma daquela velha safada vier, eu vou moe-la no
cacete!”, disse em meus pensamentos.
Deitei na rede, lá na sala de visitas... era
quase meia-noite, e começaram os barulhos na alcova... na cozinha... e no
corredor! Primeiro, ouvi um barulho de pratos, com um tilintar de metal...
(Como se alguém estivesse servindo o jantar!), depois ouvi sons de passos no
corredor; e ouvi como se algo estivesse sendo mastigado ... ou roído (Como se
alguém estivesse comendo rapadura, ou torresmo!)! Pensei comigo mesmo: “Eu sou
um homem da ciência! Não acredito nessas cosias não!”. O que poderia ser?
Ratos? De repente, ouvi um grito, como se um gato estivesse sendo estrangulado:
“Ooooaaaaauuuuuu!”. Dentro da rede, eu fiquei paralisado! “Que porra é essa?”,
falei em voz alta! E novamente, aquele som: “Oooaaaaauuuu!”. “É só a porra de
um gato! Caralho! É só um gato no cio! Que gato filho da puta!”. O som veio
mais para perto! Parecia que estava encima da casa, caminhando em minha
direção: “Ooooaaaaauuuuuu!”. Ou será no quintal? “Ooooaaaauuuuu!”. Não! É no
corredor! E se eu corresse dali - “Oooaaaaaauuuu!” - e fosse pedir para dormir
na casa de papai? “Ooooaaaaauuuu!”. Ai era foda! “Oooaaaauuuuu!”, vão dizer que
eu sou “um covarde”! “Ooooaaaauuuu!”. Vou ficar desmoralizado! “Ooooaaaauuuu!”.
Não, não, não! Isso não!”. E fiquei ali, paralisado de medo... dentro da rede...
com o jucá na mão... mas não corri... não me mexi!
Depois de uma hora da manhã, o casal de gatos saiu de lá, provavelmente para trepar em outros telhados! E eu pude dormir em paz!
Raimundo Alves
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