Certa vez alguém — não me lembro quem, nem de onde — nascido em outra região, do Sudeste, perguntou-me sobre o significado da expressão “Queima Graxa”, que ouvira mais de uma vez e da boca de muita gente: era um palavrão? Uma ofensa? Afronta? Ou gesto de carinho?
Bem, deixemos que descubra o significado dela, sem que precise explicá-la, com a historieta contada a seguir.
Galalau — apelido — era figura exótica, dessas dos tipos populares tão comuns nas cidades do interior. Não descobri e ninguém sabe sobre seu nome verdadeiro, se nascera na cidade ou aparecera por aqui vindo não se sabe de onde. Conheci-o quando ele já tinha, talvez, uns sessenta e cinco anos.
Andava pela cidade arrastando o seu carrinho, espécie de caixa de madeira sobre um patinete, onde punha suas ferramentas e latas de graxa, muita graxa, já que sua especialidade era engraxar, lubrificando as peças dos carros. Era mecânico sem oficina, atendendo quando era chamado, precursor, quem sabe, do delivery em nossa cidade.
No princípio tivera bastante clientela, mas, depois, só realiza o trabalho de engraxar as peças dos carros aqui ali. Escapava fazendo pequenos reparos: trocar um pneu ou peças, polir a lataria, tirar amassados com seu martelinho, trocar uma mangueira. Como bom mecânico que era, dizia, convencia a todos da necessidade de lubrificar as peças do carro ou teriam dor de cabeça mais tarde, prejuízo certo.
Era alto, magricela, a lembrar uma vírgula, ora entortando o corpo para um lado, ora para o outro. Era de uma brancura de pele descascada, sapecado, diziam, meio albino, rosto chupado, com covas em cada uma das bochechas, orelhas grandes, olhos bem abertos, como se quisesse enxergar melhor, fixados em algum ponto quando, com sobrancelhas franzidas e mil rugas, se esforçava para ver algo que ninguém enxergava.
Vivia com sua cabeça enterrado em boné sujo, logotipo escondido pelas manchas de graxa, sobre parte das orelhas, e deixando os fios de cabelos já ralos e embranquecidos sair pelos lados.
Morava no Reino de França, com sua esposa. Não tinha filhos. Quando não havia serviço, o que se sucedia quase sempre, gostava de ficar perto da entrada do Destacamento da Polícia Militar.
Dizia-se que ele gostava de soldado ou achava a farda da polícia coisa extraordinária. Encostava-se em um muro que havia ali perto, uma perna fincada no chão, bem firme, outra flexionada, com o pé esquerdo na parede, equilibrando-se, fumando seu cigarrinho, olhando para o alto sempre que expelia a fumaça depois de tragada.
Às vezes, fazendo bico com a boca, tentava — era o que parecia — formar figuras com aquela fumacinha branca, olhando-a dissipar-se.
Vestia sempre a mesma calça jeans, envelhecida, e uma camisa estampada, botões abertos do pescoço à barriga, deixando ver seu peito peludo, semelhante a uma escova de engraxar sapatos, emaranhados de fios longos, cinza, lembrando arame farpado, entrelaçados por nós cegos.
Colocava o cigarro apagado num dos cantos da boca. Com a língua, como se estivesse brincando antes de acendê-lo, jogava-o para um lado, depois para outro, como se fosse um palito de dentes, com destreza tal a ponto de nunca o ter deixado cair. E, só depois de muito brincar, acendia-o com seu velho isqueiro Bic, azul, também sujo de graxa.
Aquele cigarro jogado de um lado para outro com sua língua de trapezista entortava sua boca ora do lado esquerdo, ora do lado direito, deixando-o em uma das extremidades, sempre, como se fosse o cachimbo do Popeye.
Quando um soldado chegava ou saía do destacamento, segui-o com seus grandes olhos de águia, sobrancelhas franzidas como se fizesse esforço para enxergar melhor.
Enquanto estava naquele jogo de malabarismos com o cigarro, observava o que acontecia no entorno. Conhecido de todos, e como não incomodava ninguém, quase mudo, os policiais não mexiam com ele. Mas, aqui e ali, lhe diziam uma piada, jogava uma palavra áspera ao alto, lhe cumprimentando com algum dizer em meio aos sorrisos.
Sem entender direito o que diziam aqueles homens robustos, em fardas impecáveis e com revolver na cintura, respondia: “Hein”, bem alto, levando a mão à orelha esquerda, deixando-a na forma de concha, baixando a cabeça na direção de quem falava, como se quisesse ouvir melhor. Se a pessoa dizia outra vez, repetia o mesmo gesto. Ah, na certa, tinha audição fraca ou era meio surdo.
Muitos riam dele, lhe fazendo chacota, mais nem se importava, ria junto. Um ou outro dizia ser ele meio lelé da cuca, um “Zé Doidim”, inofensivo.
Um caso lhe sucedeu, na época da administração do prefeito Rocha Aguiar, em plena Ditadura Militar. Passando na rua do Ginásio Ipuense, colégio particular, hoje tradicional na cidade, quando se admirava com a figura de um Leão desenhado dentro de um círculo, pintados na parede da escola, viu uma garagem aberta com tratores lá dentro — ficava na frente da instituição de ensino, do outro lado da rua.
Curioso, foi lá. Não havia ninguém. Aquelas máquinas na certa estavam abandonadas, algumas já desmontados. Não pensou duas vezes. Pegou no seu carrinho uma espátula e uma tampa velha de panela, improvisada como bandeja. Deitou-se por debaixo de um trator. Havia ali muita graxa, mas empedrada. Raspou o que pôde dos três tratadores. Ah, estava mesmo precisando. Sem dinheiro naquele mês, aquilo vinha a calhar.
Não esperou. Do bolso, pegou o isqueiro, acedeu o fogo sobre aquela montanha de graxa. Seria o suficiente para a amolecer e deixá-la no ponto. Mas, contra a sua expectativa, sem nem pensar ser aquele produto inflamável, depois de pequena explosão, que ergueu um palmo de fumaça escura, o fogo alastrou-se de uma vez, como quem jogasse álcool numa fogueira de São João, lhe queimando os cabelos do peito, sobrancelhas e cílios, boné e cabelos. Tinha peito, cara e braços tostados.
Seu grito foi ouvido longe. Alguém o acompanhou até o hospital, ali pertinho. Atendeu-o o doutor Thomaz Correia, em início de carreira.
Valha-me, Deus — começou o médico — O que tinha sido aquilo, homem? E Galalau contou-lhe como tinha queimado a graxa:
— Ah, seu doutor, esse negócio de queimar graxa é pra doido, e lá ia eu imaginar aquilo!
— Mas, Galalau, filho de Deus, deixe desse negócio de queimar graxa, homem, arranje coisa melhor. E graxa é tão cara assim?
Para sua sorte, as queimaduras tinham sido superficiais, apesar de deixar-lhe, no rosto e no peito depenado, marcas que, se diminuíam com o tempo, permaneceram a lembrar-lhe o malfadado episódio.
Depois daquele dia, tendo a história se espalhado pela cidade, por onde passava, alguém gritava:
— Lá vai o Queima Graxa!
No Ceará, quando alguém faz coisa a lembrar alguém que não regula bem das bolas, se diz dele: “É um queima graxa”.
Da Terra de Iracema, Ipu, no Ceará, onde nasceu, tornou-se expressão comum do cearense.
Com informações de Iramar Miranda.
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