Caráter fragmentário, deformação da realidade
Seja como for, o que permite interpretações das mais diversas é, em primeiro lugar, o caráter aberto, fragmentário, das obras kafkianas e, em segundo lugar, a técnica de deformar a realidade, elemento expressionista de sua arte, que, de forma consciente, parece, nunca se fecha num enredo em que tudo faria sentido.
Aliás, a trama é o que
menos importa. O mundo introspectivo dos personagens e sua realidade se chocam.
Há quem considere Kafka um dos primeiros existencialistas ao dar vasão à
angústia como base do sentimento humano e do pensamento. Parece reconhecer o
absurdo e a falta de sentido da existência humana, cuja base é Kierkegaard.
Confusão e ansiedade são o que encontramos na metáfora extrema presente em A metamorfose. No centro dessa novela está a reação da família de Gregor Samsa quando, certa manhã, acorda metamorfoseado em asqueroso inseto.
Impossibilitado de trabalhar e seguir a vida como antes, a família, ao invés de oferecer-lhe compaixão, fica enojada. Samsa, inseto, é visto agora como ser abjeto e grotesco.
O mundo civilizado e racional, representando na família do
personagem central, expõe as reações cruéis e desumanas. Resta ao inseto apenas
correr pelas paredes, esconder-se debaixo do sofá, passar o tempo.
Embora Gregor renuncie à
tentativa de afirmar sua dignidade ou humanidade, emociona-se ao escutar a irmã
tocando violino. Seduzido, deixa o quarto, renuncia a sua bestialidade exterior
e tenta afirmar sua individualidade, mas, ao contrário, o fato não passa de
outra oportunidade para ser alvo de maus-tratos e ofensas.
Há, nessa pequena obra, pelo menos três transformações e uma inversão: neste caso, a novela inicia-se com o clímax, puxado para o início. A primeira mudança refere-se à metamorfose de Sansa em inseto.
Se antes era o esteio da família, agora, sem poder trabalhar torna-se entulho que, aos poucos, será renegado como coisa imprestável. Em segundo lugar, sua família também se transforma, sobretudo sua irmã. Se no início ela resolve ajudá-lo, no final propõe aos pais livrar-se dele.
Para isso, seria preciso, diz ela,
considerá-lo não humano, seu irmão, mas apenas um inseto. Em terceiro lugar, a
metamorfose tira da família sua sustentação econômica, baseada na exploração do
rapaz, mas, por outro lado, representa, para este, a liberdade, o fim da
condição de escravo.
Como em outras obras, o
herói ou anti-herói de Kafka nunca supera sua angústia. Descreve o paradoxo e
busca nunca resolvida. Se Dostoiévski introduz a angustia como elemento chave
em seus romances, Kafka levou-a ao extremo.
Os personagens do mestre sempre falham em suas buscas. Josef K. não descobre de que o acusam, nem consegue provar a inocência. K. nunca penetra no castelo. Aquele que tenta conhecer a lei consegue apenas pôr-se diante da porta de entrada.
Na ficção
Kafkiana o herói —
impotente diante de um poder superior que o controla, de um mundo regido por
forças aparentemente cegas, num labirinto sem saída, alienado e incapaz de
moldar seus destinos — se
frustra no final.
CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
CARPEAUX, Otto Maria. Franz
Kafka e o mundo invisível. In: A cinza do pulrgatório. Balneário Camboriú, SC:
Livraria Danúbio Editora, 2015.
KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
______. O castelo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
______. O processo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011 (Saraiva de Bolso).
______. Um artista da Fome e A construção.
Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
______. O veredicto e Na colônia penal. São Paulo: Companhia das Letras, 1998
ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra: os autos do
processo. São Paulo: Perspectiva, 1969.
ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto I. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
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