Kafka e o inexpugnável - 3

 

Caráter fragmentário, deformação da realidade

Seja como for, o que permite interpretações das mais diversas é, em primeiro lugar, o caráter aberto, fragmentário, das obras kafkianas e, em segundo lugar, a técnica de deformar a realidade, elemento expressionista de sua arte, que, de forma consciente, parece, nunca se fecha num enredo em que tudo faria sentido.

Aliás, a trama é o que menos importa. O mundo introspectivo dos personagens e sua realidade se chocam. Há quem considere Kafka um dos primeiros existencialistas ao dar vasão à angústia como base do sentimento humano e do pensamento. Parece reconhecer o absurdo e a falta de sentido da existência humana, cuja base é Kierkegaard.

Confusão e ansiedade são o que encontramos na metáfora extrema presente em A metamorfose. No centro dessa novela está a reação da família de Gregor Samsa quando, certa manhã, acorda metamorfoseado em asqueroso inseto.

 Impossibilitado de trabalhar e seguir a vida como antes, a família, ao invés de oferecer-lhe compaixão, fica enojada. Samsa, inseto, é visto agora como ser abjeto e grotesco. 

O mundo civilizado e racional, representando na família do personagem central, expõe as reações cruéis e desumanas. Resta ao inseto apenas correr pelas paredes, esconder-se debaixo do sofá, passar o tempo.

Embora Gregor renuncie à tentativa de afirmar sua dignidade ou humanidade, emociona-se ao escutar a irmã tocando violino. Seduzido, deixa o quarto, renuncia a sua bestialidade exterior e tenta afirmar sua individualidade, mas, ao contrário, o fato não passa de outra oportunidade para ser alvo de maus-tratos e ofensas.

Há, nessa pequena obra, pelo menos três transformações e uma inversão: neste caso, a novela inicia-se com o clímax, puxado para o início. A primeira mudança refere-se à metamorfose de Sansa em inseto. 

Se antes era o esteio da família, agora, sem poder trabalhar torna-se entulho que, aos poucos, será renegado como coisa imprestável. Em segundo lugar, sua família também se transforma, sobretudo sua irmã.  Se no início ela resolve ajudá-lo, no final propõe aos pais livrar-se dele. 

Para isso, seria preciso, diz ela, considerá-lo não humano, seu irmão, mas apenas um inseto. Em terceiro lugar, a metamorfose tira da família sua sustentação econômica, baseada na exploração do rapaz, mas, por outro lado, representa, para este, a liberdade, o fim da condição de escravo.

Como em outras obras, o herói ou anti-herói de Kafka nunca supera sua angústia. Descreve o paradoxo e busca nunca resolvida. Se Dostoiévski introduz a angustia como elemento chave em seus romances, Kafka levou-a ao extremo.

Os personagens do mestre sempre falham em suas buscas. Josef K. não descobre de que o acusam, nem consegue provar a inocência. K. nunca penetra no castelo. Aquele que tenta conhecer a lei consegue apenas pôr-se diante da porta de entrada. 

Na ficção Kafkiana o herói impotente diante de um poder superior que o controla, de um mundo regido por forças aparentemente cegas, num labirinto sem saída, alienado e incapaz de moldar seus destinos se frustra no final.

 Referências:

CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CARPEAUX, Otto Maria. Franz Kafka e o mundo invisível. In: A cinza do pulrgatório. Balneário Camboriú, SC: Livraria Danúbio Editora, 2015.

KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

______. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

______. O processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011 (Saraiva de Bolso).

______. Um artista da Fome e A construção. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______. O veredicto e Na colônia penal. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra: os autos do processo. São Paulo: Perspectiva, 1969.

ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto I. São Paulo: Perspectiva, 2006.

 

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