Não sei em que época exatamente isso se deu. Sei que eu tinha ido ao Rio, voltei ao Ceará, e depois voltei ao Rio novamente. (Eu deveria ter uns 22 anos).
Fui trabalhar à noite numa das bancas de jornais no Leblon. Nesta época meu irmão Pedro havia sido aprovado no concurso da justiça, e estava aguardando ser convocado para trabalhar. Eu tentei pela primeira vez o vestibular na UFRJ. Não passei, mas vi que aquilo não era nenhum “bicho de sete cabeças”! Vi que se eu me esforçasse, passaria! (Depois contarei a minha aprovação no vestibular da UVA, em Sobral, que foi uma verdadeira odisseia!).
Trabalhei o dia inteiro, fechei a banca umas sete da noite, peguei o ônibus e fui para casa (que naquela época era na Avenida Maracanã). Pedro, Cícero e João Lima (um rapaz do Ipu, que era fuzileiro e morava com a gente) haviam alugado um apartamento naquele bairro, e estavam todos morando por lá. Foi uma época muito sacrificada para mim. A banca vivia dando desfalques, e eu tinha esses desfalques descontados de meu suado salário de jornaleiro. Foi horrível!
Eu pagava os prejuízos da banca do Seu Zé Zicarelli, sem que a culpa fosse minha! Quem roubava aquela banca? Essa é uma pergunta sem resposta, que eu me faço há muitos e muitos anos! Alguém roubava aquela banca! Havia desfalques de 3 mil, 5 mil em todos os balanços, e todos os funcionários tinham que pagar o prejuízo! Eu vivia quebrado, sem dinheiro para nada, a não ser para pagar a condução, e mal dava para me alimentar!
Pedro me dispensou algumas vezes de pagar o aluguel, mas isso era constrangedor, pois nem todo mundo concordava com isso! (Depois, fiquei desempregado, e a coisa piorou muito mais! Se não fosse pela ajuda de minha irmã Maria, e de Pedro, eu teria passado muita fome no Rio de Janeiro. Essa é uma dívida que eu tenho para com eles!).
Eram sete da noite, ou oito, ou nove, não sei ao certo! Desci do ônibus exausto, um passo cansado atrás do outro, doido pra chegar em casa (pro apartamento) dormir. Eu dormia num colchão de esponja velho, esparramado no chão, junto com um travesseiro e um cobertor surrado. Milagrosamente, Cícero, que também morava com Pedro, havia passado em um concurso para Soldado Especialista da Aeronáutica, e passava semanas sem aparecer em casa, pois preferia ficar na Base Aérea, onde tinha moradia e alimentação gratuitas.
Eu não dei essa sorte (ou seria um “azar”, pois a lavagem-cerebral promovida nos quarteis do Rio é algo monstruoso! Os indivíduos que entram para as Forças Armadas saem de lá odiando pobres, pretos, favelados e grevistas! Entram uns meninos pobres, e saem uns canalhas fascistas filhos da Puta). Para mim, não havia nenhuma condição de amar o Rio! Aquilo era o Inferno! Lá ninguém tinha apreço pela vida!
No Rio minha vida não valia nada! (Melhor dizendo, eu não valia nada!). E os valores morais que eu carregava comigo do Ceará estavam todos investidos! O ladrão era apenas “uma pessoa esperta”! O malandro era (e é) uma espécie de “herói carioca”! E o homem honesto era (e é) tomado como um “tolo” e um “idiota”!
As ruas do entorno do Maracanã estavam tumultuadas, o trânsito agitado, bandos de jovens torcedores passavam para lá e para cá, com cartazes, bandeiras e fogos de artifício. Naquela noite o Flamengo (meu time do coração) havia jogado com o Botafogo. O jogo saiu de 2 a 1 para o Flamengo. Mas o botafogo sempre fora freguês do Flamengo, isso não era nenhuma novidade! E naquela noite não fora diferente. O jogo havia acabado, alguém gritou o placar na rua, e eu fiquei sabendo do resultado: dois a um para o Flamengo. E eu pensei: “O Fla é foda! Ensinou esse ‘Glorioso de merda’ quem é que manda!”. Mas nada fiz. Eu estava cansado! Só queria chegar no apartamento, tomar um banho, deitar e dormir!
A avenida Maracanã é larga, ampla, possui diversas faixas de mesma mão para os carros passarem. Quatro vias indo, quatro vias voltando. Eu caminhava do lado direito, contrário ao estádio de futebol. Dava um passo atrás do outro, cansado, doido pra chegar em casa. Lá na frente, vi uns dez ou quinze rapazes, com bandeiras nas mãos, vestindo as cores rubro e negra, características do Flamengo.
Eles estavam do outro lado da avenida, e vinham em minha direção. De repente, um deles ergueu o punho e gritou “Meeeeennngoooooo”, ao mesmo tempo em que agitava uma bandeira vermelha e preta. Eu fiquei feliz com o gesto de comemoração, mas não disse nada, não comemorei nada! (Estava cansado, e só queria ir pra casa, descansar!).
De repente, os outros rapazes também gritaram “Meeeeennngoooooo”, e agitaram os braços! Eu não sou de me emocionar com futebol. Sempre torci pelo Flamengo, influenciado por meus irmãos Doutor, Manoel e Pirão, mas nunca senti grandes arroubos futebolísticos, nem mesmo com a seleção brasileira!
E os garotos gritando “Meeeennnngoooooo”, e eu nada! Ai um deles gritou: “- É um botafoguense, vamos pegar esse FDP!” E começaram a caçar objetos no solo, com intenção de jogá-los em mim. Eles não poderiam vir até onde eu estava, pois a avenida Maracanã nos separava, e nela cinquenta mil carros passavam a 200 por hora, impedindo-os de me alcançar.
Eu nada disse, apenas apressei o passo, seguindo na direção do apartamento de meus irmãos. Minha frieza sugeriu a eles que eu era “botafoguense”, e que “mereceria uma surra”! Mais à frente, alguns deles acharam pequenas pedras soltas no calçamento da avenida, e as atiraram em mim. Lembro de algumas pedras passarem longe, atingindo os edifícios localizados logo à frente.
Mas, súbito, uma delas passou raspando em minha orelha, quase atingindo minha cabeça. Seu zumbido pareceu o de um marimbondo! E eles acharam mais pedras! Eu não tive alternativa: reuni minhas forças, e corri para me afastar daqueles delinquentes horrorosos! Mas eles me seguiram, do outro lado da avenida Maracanã!
Por azar, logo à frente, o sinal fechou, e eles puderam atravessar para o meu lado da avenida! Eu mal podia acreditar! Eu estava correndo de uns vinte homens vestidos com as roupas do Flamengo, meu time do coração! Inacreditável! Corri!
Corri mesmo, como se a minha vida dependesse disso! E provavelmente ela dependia mesmo! Corri por uns cem metros! E eles correndo atrás! Aí eu cheguei em uma praça! Na praça havia um pequeno grupo de torcedores do Botafogo. E lá, um deles gritou: “- Gente, olhaaaaa! Os Urubus tão perseguindo um botafoguenseeeeeee!” Naquela hora, virei botafoguense, e disse “É isso mesmo! Socorre aí!”
E vi quando os botafoguenses pegaram paus e pedras, e passaram a atacar os flamenguistas, que revidaram os ataques! Eu, é claro, continuei correndo! Corri! E corri! E Corri! Foi um quebra-pau terrível! Pedradas, socos, pontapés, correrias e fogos de artifícios!
Logo adiante, um ônibus estava parado, aguardando o sinal abrir. O sinal abriu, pedi ao motorista para entrar, ele abriu a porta. Eu subi no ônibus, e sai de lá, o quanto antes! Ainda pude olhar pela janela do ônibus, e ver flamenguistas e botafoguenses trocando socos e chutes, numa guerra louca, sem sentido e sem civilidade!
Enquanto o coletivo seguia por ruas e avenidas estranhas, eu fazia um juramento a mim mesmo: a partir daquele dia iria torcer Botafogo! Mas não pude cumprir a promessa! O Botafogo mergulhou em uma fase ruim, perdia um jogo atrás do outro! Uma derrota acachapante depois de outra derrota acachapante! E eu tentando “sentir tesão” pela Estrela Solitária! E nada... E nada!
Era uma decepção atrás de outra decepção! E perdia justamente para a porra do Flamengo! E aí, depois de anos, tentando torcer pelo Botafogo, eu finalmente desisti, e voltei a me apresentar como “flamenguista”! Mas não tenho nenhuma paixão por futebol! Pra mim, futebol foi uma arma inventada por regimes fascista da Europa para manipular as massas urbanas, alienando-as do verdadeiro debate político!
Para falar a verdade, hoje, enquanto escrevo essas memórias, eu não dou a mínima para a sorte do Flamengo! Eu quero é que o Flamengo se foda! Assim como o Vasco, o Botafogo, o Palmeiras, o Corinthians, o Fluminense, ou mesmo o Ceará!
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