Mesmo com avanços em saúde e renda, Brasil segue emperrado na formação de base. Omissão estrutural cobra seu preço do professor 1x
Por Valter Mattos
da Costa*
“O professor caminha em direção à
sala de aula. Aproximadamente 40 alunos o aguardam. Do lado de fora, já se
escuta a algazarra. Entrando, deseja bom dia. Poucos respondem.”
Os dados mais
recentes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
divulgados em 6 de maio de 2025, revelam uma contradição brutal: enquanto os
índices de saúde e renda melhoram, a educação, sobretudo a básica, patina. O
relatório destaca que a estagnação educacional compromete o progresso do IDH.
“Os olhos do professor percorrem a
sala. Uns em pé, outros gritam. Muitos virados de costas. Enquanto retira os
materiais da mochila, enumera mentalmente os desafios: alunos com TDAH
(Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), TEA (Transtorno do
Espectro Autista), TOD (Transtorno Opositivo Desafiador), DI (Deficiência
Intelectual) e dois analfabetos no 9º ano. Alguns com laudo, outros sem. Mesmo
diagnosticados, como os com TEA e DI, seguem sem mediadores. A Secretaria de
Educação não oferece suporte. A dignidade desses estudantes é ignorada. E o
professor, sozinho, tenta o impossível.”
O fracasso escolar
não nasce da incompetência individual, mas da estrutura desigual de um sistema
que cobra desempenho sem oferecer condições. A obsessão por indicadores e metas
sustenta resultados artificiais, em que avaliações padronizadas alimentam
discursos, não mudanças. Essa lógica aprofunda a exclusão, normaliza o abandono
e legitima a superficialidade. Enquanto isso, o chão da escola se desfaz sob os
pés de quem ensina.
“Como tentativa de tornar a aula mais
suportável, no improviso, o professor já recorreu a filmes. Em vez de
estrutura, leva o que pode. Sobe escadas com uma TV emprestada da coordenação,
pilhas no bolso, cabo HDMI trazido de casa e cansaço nos ombros. Substitui a
omissão do Estado com criatividade solitária. Adapta, reconfigura, reavalia.
Ninguém repara.”
Hilda Alevato
(doutora em Educação e professora de psicologia da Educação da UFF), em
“Trabalho e Neurose: Enfrentando a tortura de um ambiente em crise” (1999), já
nomeava o que tantos hoje calam: o ambiente escolar virou cenário de tortura
cotidiana. Embora trate de múltiplos setores laborais, sua análise encontra na
escola pública um dos espaços mais evidentes de corrosão psíquica e
esvaziamento subjetivo.
“A temperatura passa dos 40 graus. O
ventilador não gira. O ar-condicionado suspira. Metade da turma ignora o filme
planejado. O barulho é constante. Um aluno autista chora. O professor segura a
TV com uma mão e a própria frustração com a outra.”
A exigência de
“aulas atraentes” é outra armadilha. O discurso neoliberal na educação exige
que o professor seja também animador, terapeuta, técnico em informática,
produtor de conteúdo e mediador de conflitos. Tudo isso, claro, sem formação
adequada, nem remuneração compatível. A responsabilização pedagógica esconde a
precarização total.
A nova versão do
Plano Nacional de Educação (PNE), discutida no Senado em 2024, mantém essa
lógica de eufemismos. O texto ignora o adoecimento docente, evita discutir o
piso salarial nacional com correção inflacionária real e omite qualquer
proposta efetiva de redução da carga de trabalho. Promete “qualidade”, mas sem
investir nos que a constroem. Procede?
“O professor, na mesma turma, tenta
aplicar avaliação. Em dupla, com consulta. Estratégia que já não surte efeito.
Há planos diferenciados, provas adaptadas, atividades paralelas. No final, o
conselho de classe decide: todos devem ser aprovados.”
A orientação pela
diminuição das taxas de reprovação até nasce de uma intenção pedagógica
pertinente. Contudo, sem planejamento adequado, tornou-se instrumento de
maquiagem institucional. Governos agora buscam inflar indicadores, reduzir
reprovações e garantir verbas federais – sem oferecer suporte real ao
estudante. A aprendizagem concreta torna-se secundária. O esforço docente se
dilui. A política educacional se curva à aparência.
A política
educacional brasileira não fracassa por acaso. Ela opera sob coerência interna.
A lógica é manter a aparência de eficiência enquanto se esmaga a base do
sistema. Professores não estão apenas sobrecarregados: estão sendo
deliberadamente corroídos.
“Três turnos por dia. Manhã, ensino
fundamental municipal. Tarde, ensino médio estadual. Noite, EJA. Até isso se
perdeu. A noite que antes aliviava, agora castiga. Jovens problemáticos,
transferidos como punição, desfiguram o que restava de sentido.” (Adaptado de
um relato de um professor do ensino básico, mas qur poderia ser de qualquer
escola pública do país).
A reprodução das
desigualdades escolares é visível, mas fingem não ver. O capital cultural dos
estudantes das periferias não é considerado. Suas experiências são silenciadas.
Seus corpos disciplinados. Seus fracassos atribuídos à falta de esforço. O
professor torna-se cúmplice involuntário dessa violência simbólica, porque
também está sob ataque.
Enquanto isso, o
IDH brasileiro celebra crescimento. Mas a escola segue como trincheira
esvaziada. A saúde avança, a renda melhora. A educação desaba. Os dados sobem,
mas o chão da sala de aula parece afundar.
Nada mais cruel do
que exigir esperança de quem sobrevive exaurido. Nada mais perverso do que
exigir resultado de quem já não consegue respirar. E ainda culpá-lo por não
conseguir sorrir.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.
FONTE: ICL
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