Professor Leomir Melo (Filósofo, psicanalista e psicoterapeuta)
O brincar é, para a psicanálise, uma atividade fundante da subjetividade. É no ato de brincar que a criança — e também o adulto — dá forma a seus desejos, angústias e experiências emocionais, organizando simbolicamente o mundo interno e sua relação com a realidade. No entanto, quando o brincar envolve objetos como os bebês Reborns — bonecas hiper-realistas cuidadas como se fossem recém-nascidos — emergem questões sobre os limites entre fantasia saudável, delírio e exibição social.
A psicanálise, desde Freud, entende que a fantasia tem um papel central na vida psíquica. Por meio dela, o sujeito dá vazão a desejos inconscientes, elabora perdas, e encontra saídas simbólicas para tensões emocionais. No brincar infantil, isso é claro. Mas o uso dos bebês Reborns por adultos — muitas vezes exposto nas redes sociais — nos convida a refletir: estamos diante de uma expressão legítima da fantasia, de um quadro de delírio ou da busca por likes e validação?
Winnicott traz o conceito de espaço transicional, um lugar psíquico intermediário entre o mundo interno e a realidade objetiva, onde o brincar e a criatividade se desenvolvem. Os bebês Reborns, quando inseridos nesse espaço, podem funcionar como objetos transicionais tardios — representações simbólicas de um bebê real, que ajudam a elaborar lutos, frustrações, traumas ou desejos não realizados, como a maternidade negada ou a perda de um filho.
Contudo, a situação se torna mais complexa quando a fronteira entre fantasia e realidade se dissolve. Quando o sujeito passa a tratar o bebê Reborn não como "como se fosse", mas "como sendo de fato", sem manter a crítica da realidade, adentramos o campo do delírio — entendido, segundo Freud e Lacan, como uma reconstrução psíquica rígida da realidade diante de uma ruptura no simbólico.
Paralelamente, o fenômeno se estende para o campo da exibição digital. Vídeos, fotos e relatos diários sobre o “cuidado” com os bebês Reborns são postados e amplamente curtidos nas redes sociais. Nesse contexto, a fantasia deixa de ser apenas um mecanismo de elaboração psíquica e se converte também em um discurso para o outro — uma performance pública. A pergunta muda: trata-se ainda de uma experiência íntima de simbolização ou de uma busca por visibilidade, aceitação e likes?
A psicanálise não se apressa em patologizar práticas. Ela escuta os significados subjetivos envolvidos. O que importa é a função psíquica que o objeto cumpre para o sujeito: há espaço para a elaboração? Há sofrimento? Há rigidez ou flexibilidade simbólica? A relação com o bebê Reborn pode ser um modo criativo de lidar com a dor — mas também pode mascarar um vazio emocional profundo ou escancarar uma relação frágil com o próprio desejo.
Assim, o fenômeno dos bebês Reborns nos oferece uma rica oportunidade para pensar os modos contemporâneos de brincar, fantasiar e se mostrar. Entre o delírio silencioso, a fantasia criativa e a busca ruidosa por validação virtual, o brincar com esses objetos complexos revela, sobretudo, o quanto a subjetividade humana continua procurando formas de cuidar, reparar e ser vista.
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