Por: Antônio Israel Ferreira de Sousa. Estudante de História.
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Foto: Fagner Freire. Ipunoticias.com.br |
É durante o mês de agosto que ocorrem as festividades em alusão ao aniversário da cidade de Ipu, que conquistava sua tão cobiçada categoria de cidade no dia 26 de agosto de1885.
Como tradição, a cidade se equipara com toda uma programação cultural, para que os cidadãos ipuenses possam acompanhar diversos rituais solenes, festas e desfiles. Um deles se destaca de forma muito particular, o chamado Concurso da Garota Iracema.
Anualmente, durante os carnavais, ressurge a polêmica questão: “mas não é errado se fantasiar de índio?”, enquanto que do outro lado segue a narrativa oposta, a defender que “indígena não é fantasia”.
Essa questão ultrapassa as divergências do senso comum, visto que há uma vasta bibliografia acadêmica a debater assuntos decoloniais e estudos culturais, e chega até mesmo a dividir opinião entre as próprias figuras ou grupos indígenas, que não veem problema nas “fantasias de índios”. No caso do Ipu é importante analisar alguns aspectos.
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Foto: Fagner Freire. Ipunoticias.com.br |
Os conceitos e os termos utilizados precisam ser cuidadosamente bem pensados. Se é errado ou não querer representar um indígena ou uma cultura de algum grupo social, a palavra central para a resposta dessa pergunta é: “depende”.
Isto porque é preciso pensar nos contextos, ou seja, trata-se de uma peça? É um espetáculo de dança? É um evento escolar? É um evento político? Pois conforme mudam-se as perguntas, mudam-se as respostas e as representações. A palavra representação é o foco aqui, pois ela diz muito sobre o desfile que ocorre no Ipu.
A ideia do concurso é selecionar meninas (em sua grande maioria crianças), para desfilarem transvestidas ou fantasiadas como a “virgem dos lábios de mel”, em uma representação que será julgada e avaliada por uma banca de jurados, composta por misses e figuras ilustres da cidade.
Embora a Iracema seja um personagem fictício pertencente ao romance de José de Alencar lançado no ano de 1865, a repercussão de sua figura está no imaginário popular dos ipuenses.
O concurso representa a permanência de uma imagem estereotipada do indígena, e pouco reflete sobre os debates decoloniais, que há muito tempo questionam termos como: “apropriação cultural”, “índio”, “raça”, “cultura”.
As intencionalidades falam por si. A dúvida sempre ocorre quando as pessoas não sabem bem como usar a imagem de grupos sociais. Se pensarmos sobre o carnaval na antiguidade, em que a prática do “vestir-se do outro” e de “ocupar” o lugar social do outro não era um problema, notaremos claramente que havia um outro contexto histórico para aquele período.
No entanto, o nosso contexto histórico atual é de um período pós colonizador e de pós genocídio. É na contemporaneidade, inclusive, que existe um enorme esforço para reconstruir uma cultura que supere a ferida colonial e construa um novo sistema vigente.
Por isso, utilizar os elementos culturais desses grupos que foram discriminados e minorizados no nosso relógio histórico atual, deve ser passível de muita reflexão. O problema não é representar, é como representar.
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Foto: Fagner freire. Ipunoticias.com.br |
As representações estão sempre carregadas de simbolismos, como é o caso do “Dia do Índio”, comemorado em 19 de abril, em alusão ao primeiro Congresso Indigenista Interamericano, em 1940, no México. É muito comum as escolas utilizarem-se de cocar, brincadeiras, cantigas, confecção de arco e flecha para crianças.
A data é para refletir e debater a diversidade cultural dos indígenas, e principalmente entender a importância deles na nossa história nacional, porém, a representação dele é sempre de uma imagem selvagem, de um indígena que vive no mato e no passado colonial brasileiro.
Nessa lógica ocorre a apropriação cultural, pois trata-se de um grupo dominante que se apodera de uma cultura inferiorizada e acaba repassando suas tradições de forma desconexa, que se esvaziam no tempo e no espaço.
Essa mesma perspectiva pode ser discutida conforme as análises marxistas, que enxergam na apropriação cultural uma mercadologia da cultura, que geralmente ocorre para gerar lucro para grandes empresas corporativas, que se utilizam dos traços culturais de um povo e de uma comunidade, sem sequer recompensá-los.
Todos esses aspectos estão presentes no Ipu, visto que a imagem da Iracema foi e é utilizada até hoje para diversos fins. O município possui uma leitura romantizada da figura do indígena, que junto da obra de Alencar, legitima esta terra como “berço de Iracema”, que vem das narrativas nacionalistas com “argumentos históricos enfeitados”.
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Foto: Fagner freire. Ipunoticias.com.br |
No século XX a elite moderna e progressista não conseguiu aniquilar o passado “selvagem” do Ipu, e tanto os memorialistas abastados quanto a pequena burguesia local vão resgatar a figura da guerreira tabajara para fortificar cada vez mais essa “história oficial”.
A imagem da Iracema está presenta nas poesias, nas artes plásticas, nas músicas, nas rádios, mercearias e nos mercados locais. O uso de sua imagem homogeneíza a cultura ipuense, não diz nada sobre o indígena no Ceará, estereotipa e minimiza de forma higiênica a Iracema, que sai de “bárbara”, para “guerreira épica”, o foco é sempre a literatura alencariana, que em nada se distancia do concurso da Garota de Iracema.
Existem soluções para construir um novo horizonte. O ensino e a pesquisa ajudariam na carência latente de informações sobre o assunto. Uma reflexão crítica do setor cultural que pensasse o indígena mais como atual, pensador, artístico e menos como um indivíduo primitivo que canta “uga uga”, ajudariam a barrar essas representações caricatas e vazias.
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