Banana - Bodega do meu pai V

Vou tentar contar a lamentável história da Banana aqui, pois devo isso a ela. Banana era o apelido que deram a uma senhora, de aparência horrível (parecia uma bruxa medieval), que eu conheci na infância. 

Seu nome, por pura coincidência, era Maria Alves de Araújo, o mesmo nome de minha irmã! Sua tragédia pessoal começou antes dela nascer. O pai e a mãe de Maria entraram em desarmonia. 

Acho que o marido traía a esposa, e a ela, para “se vingar” do marido mulherengo, resolveu “dar a filha para a adoção”! Vou chamar a mãe de Maria de “Joana Alves da Silva”, e o pai eu vou chamar de “Antônio Sousa e Silva”, mas quero deixar claro que são nomes falsos, apenas por convenção. 

Maria era uma criança linda! Loirinha, de belos olhos azuis! Ela teve a sorte de nascer na família Silva, de posses, pois seus tios e avós eram pessoas ricas, muito bem conceituadas no Ipu e em suas adjacências. 

Para você, caro leitor, ter uma ideia, um tio-avô de Maria era padre na cidade, e outro chegou a ser nomeado “prefeito-interventor” durante a Revolução de 1932.

Mas, a bem da verdade, além do prestígio do nome da família Silva, o casal Joana Alves e Antônio Silva nada de substancial tinham na vida, eles moravam “de favor” nas terras dos parentes, próximo ao mercado público. 

E Antônio era marceneiro, fabricava móveis e estofados para sobreviver. 

Maria foi dada à adoção para um rapaz-velho — Pedro Torquato da Silva —, que já passava dos quarenta anos e ainda não tinha filhos, nem havia se casado. Velho e amargurado, Torquato aceitou de bom grado adotar a menina, mas, até onde sei (Maria era confidente de minha mãe), ele nunca demonstrou qualquer afeto, ou zelo, pela criança. 

Maria cresceu sem conhecer o amor de mãe, ou de pai, e foi apenas “alimentada” (precariamente) por “padrim Torquato”, que era um homem frio, amargurado, mesquinho e “mão-de-vaca”.  

Certa vez, Maria Alves disse à minha mãe que nunca usou um vestido quando ela era criança, que seu primeiro vestido só foi dado por Torquato quando ela já tinha 10 anos! “Eu fui criada como Deus criou batata! Passando frio e fome! Sem ter nada pra vestir! Aquele cabra-véi safado que me adotou não ligava pra mim não! Eu era criada como uma cachorra na casa dele! Eu pedi muito a Deus pra ele me levar... Eu não queria viver não!” 

O ato da mãe de Maria Alves “dar a própria filha” para um estranho teve um efeito perturbador na personalidade da criança! Ela irá crescer na miséria, ao lado de seu irmão mais novo, de seus pais e de seus parentes “ricos”! 

Como não poderia ser diferente, Maria passou a vida odiando profundamente a própria mãe! Certa vez eu a ouvi dizer para minha mãe: “Eu sei que vou pro Inferno quando eu morrer! Sei disso! Mas o que me consola é saber que aquela Amaldiçoada, que foi minha mãe também, vai tá lá! O Cão do Inferno tem ela dentro de um caldeirão fervente..., pra ela pagar pelo que ela me fez!” 

Criada sem ter o que vestir nem o que comer..., sem conhecer um carinho de mãe, de pai ou de avô, Maria Alves seria uma pessoa doente, traumatizada e amargurada! 

Ver o irmão mais novo — que a mãe não entregou para a adoção — exercendo a mesma profissão de seu pai, ver seus tios, seus avós e primos, todos muito bem de vida, e ter que passar fome, pedir um pano velho pra se vestir, tudo isso acabou com o psicológico de Maria! E ela se tornou uma criança amargurada, sofrida, rancorosa e amarga! 

Aos 12 anos, antes de se pôr moça completamente, Maria foi violada por um irmão de seu pai-adotivo, um tal de Luiz Alves da Silva. Eu não saberia dizer se ela foi “pega na marra”, ou deixou-se possuir pelo “sedutor” irmão de seu pai. (E isso importa? Nos dois casos, trata-se de um homem adulto, que molestou uma criança!). 

Mas sei perfeitamente que no Ipu dos anos quarenta uma moça que não era mais virgem não tinha a menor chance de arranjar um bom casamento. Eu a conheci aos setenta ou oitenta anos, e posso dizer que, apesar do aspecto repelente, Maria ainda era bela, pois tinha lindos olhos azuis! 

Eram olhos de um azul profundo, oceânico, que amargavam os olhos de quem os fitassem. Eram olhos belíssimos, mas perdidos em um rosto medonho, de uma bruxa, de um filme de terror! 

Certa feita eu estava vendendo na bodega de meu pai e Banana me pediu um trago de cachaça. Pegou o copo, e, de um gole só, ingeriu todo o líquido, depois de jogar a porção “para o Santo” no pé do balcão, recitava versos estranhos, quase incompreensíveis, e batia com o pé esquerdo fortemente no chão, como quem convocava espíritos! (Maria era “macumbeira”, alcoólatra, e vivia promovendo “trabalhos” e “despachos” para uma clientela que “não queria aparecer”! 

Vendo aquela senhora medonha ingerindo cachaça, certa vez lhe disse “Dona Maria, não beba isso não, que a Senhora pode morrer!” Ela sorriu amargamente, abraçou o copo com suas mãos esqueléticas, olhou fixamente para mim, disse: “Raimundo, meu rapaz, a gente morre é em vida! Eu já tô morta há muito tempo!”, virou o copo de cachaça em sua boca...

Um velhinho amigo de meu pai, de nome Chico Glória, certa feita me disse que conhecera Banana ainda adolescente, que ela era belíssima!  

— Eu conheci a Banana, quando eu era adolescente! Todo rapaz do Ipu era doido pra ter uma chance com ela...! Ela era a mulher mais bonita do Ipu, naqueles tempos! Mas ninguém queria casar com ela não! Isso não! Ela era uma mulher da vida, só servia pra gente se divertir!”, disse. 

— Como assim, Seu Chico — eu perguntei — ela era muito bonita, mas ninguém queria se casar com ela?

— Um tio dela é que ‘desonrou a coitada’! — Retrucou — Quem é que ia querer se casar com mulher descabaçada, sem ‘honra’?! Ela vivia passando de mão em mão, mas só dos homens ricos da cidade! Nunca de um pé-de-chinelo, como eu... (Risos).  

Eu interpelei Banana a esse respeito, para confirmar sua história, e ela me disse:

— Quem me desgraçou foi o Luiz Alves, tio de meu pai-adotivo. Ele me pegou à força, no riacho da Lagoa, onde eu morava. E aí eu virei mulher da vida, passando de um homem pra outro, bastava que tivesse dinheiro pra me bancar!

Pediu seu trago matinal, eu a servi. E ela ergueu o copo até a boca, bebeu a cana, cuspiu de lado, jogou a porção do Santo no chão e repetiu os versos (ou seria uma oração?): 

— Cachaça jeribita... depois de benzida vai bebida..., depois de benta... vou botar pra dentro! Em nome do Pai... do Filho ... e do Espirito Santo! Amém! — Envergou o copo, ao mesmo tempo em que batia fortemente com o pé esquerdo no chão.


Banana recebeu esse apelido devido a sua segunda ocupação: ela vendia frutas —banana, jaca, manga, caju — na Estação do Ipu. Quando o trem de passageiros por lá chegava, ela ficava gritando “olha a banana”, “olha a banana”, “olha a banana”. E assim, por chamar a atenção dos homens por sua beleza, e por ser “chata”, “barulhenta” na estação, deram-lhe esse apelido. 

Apesar de ser “mulher de vida fácil”, a vida de Banana não foi nada fácil. Ela chegou a ter vinte e cinco filhos, quase todos abortados — dizem que ela tomava uma porção abortiva. 

Dos dez que nasceram com vida, apenas um chegou à vida adulta. Todos morreram de febre, de infecção, de abandono e de sarampo. O sarampo, no Ipu dos anos cinquenta era uma verdadeira pandemia! 

Também diziam que ela não cuidava adequadamente dos filhos. Sobre isso, eu lhe perguntei:

— Dona Maria, por que quase todos os filhos da Senhora morreram?

E ela me disse que 

— Foi melhor morrer do que viver nesse mundo fodido!

Tal como havia acontecido com ela, Maria desprezava os filhos, todos, de diferentes pais, foram entregues ainda bebês para a adoção. 

Uma vez, ao subir num pé de manga, para coletar a mercadoria de sua venda estação, Maria escorregou e caiu fraturando gravemente a coluna. Depois desse acidente ela ficou deformada, desenvolvendo uma terrível corcunda em suas costas. 

Com o passar dos anos, o nome Banana lhe caiu muito bem, ela era curvada, como uma banana. Abandonada pelos amantes, Maria tornou-se alcoólatra, adquiriu a fama de “feiticeira”, “abortista” e “macumbeira”. 

Ela odiava profundamente seus pais, seus sobrinhos, seu irmão, e a cidade que tanto lhe negou uma boa vida. Os moleques do mercado viviam chamando-a pelo apelido, quando ela passava: 

— Ei, banana!

No que ela retrucava: 

"Banana é o tabaco da tua mãe com a rola do teu pai dentro, moleque filho da puta."

Dizia aquilo aos gritos, escandalizando a sociedade. Uma vez, bem na frente da Igreja, quando a procissão de São Sebastião ia passando, um moleque gritou:

— Olha a Banana!

E ela caprichou na resposta: 

"Banana é o priquito da tua mãe cheio de cabelo com o pau do teu pai bem duro feito um ferro enviado dentro! Canalha fie de rapariga!"

As ruas estavam cheias, o padre, o sacristão, o prefeito, os vereadores, as “famílias respeitáveis” estavam todos por lá. Maria olhou para todos, encarando-os  — viu que seus parentes também estavam por lá, então, ela resolveu caprichar ainda mais no xingamento: 

— Banana é o priquito da tua mãe cheio de pelos com o cacete do teu pai bem duro, feito um ferro, enviado lá dentro! Magote de filhos da putaaaaaaa! Filhos da putaaaaaa!!!!!! Filhos da puttaaaaaaaaaa!”.

Dizia aquilo enquanto empunhava ostensivamente sua bengala, erguendo-a para o céu. Passando mal, desmaiou, foi amparada por transeuntes! Sentaram-na num banco da praça, deram-lhe um pouco de água, mas ela pediu cachaça! 

Eu, que estava por perto, fui até ela, para ver se estava bem, no que ela me olhou, com seus olhos de azul-turquesa, repetiu aquela frase, dita meses atrás: “

— Raimundo, meu rapaz, a gente morre é em vida! Eu já tô morta há muito tempo! — Abriu um sorriso amargo. 

Acho que ela se aproveitou da ocasião para ofender a cidade que tanto a desprezava. A mãe, que a abandonara na infância, o pai que nada fez para resgatá-la, o tio que a violentou na puberdade, e todos os homens e mulheres do Ipu que lhe deram as costas quando ela tanto precisou de afeto e de proteção na infância! 

Ergueu-se, apoiada em sua bengala, saiu da praça da Igreja devagar, seguiu para o Alto dos Quatorze, tomou o último trago na bodega de meu pai, entrou em sua casa  —ficava na mesma rua em que nós morávamos. 

La chegando... deitou-se numa rede, depois de finalmente conhecer a paz, morreu quietinha como um passarinho.

Ao saber na notícia de sua morte eu me lembrei de suas tristes palavras: 

— Raimundo, meu rapaz, a gente morre é em vida! Eu já tô morta há muito tempo!

Também me lembrei da praga que ela rogou em sua mãe: 

— Eu sei que vou pro Inferno quando eu morrer! Sei disso! Mas o que me consola é saber que aquela Amaldiçoada, que foi minha mãe também, vai tá lá! O Cão do Inferno tem ela dentro de um caldeirão fervente, pra ela pagar pelo que ela me fez!”

Que descanse em paz, Dona Maria Alves de Araújo, o mesmo nome de minha querida irmã.

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