O negro ladrão de relógio

A família Sousa estava entre as primeiras famílias do Ipu a comprar um rádio. O rádio era uma novidade extraordinária, que cativava a imaginação dos matutos. Vinha gente de lugares distantes, só para ver e ouvir a “caixa de madeira” que “canta” e que “fala”, como se fosse um papagaio! 

Uma vez, após quase um dia inteiro de viagem para ver e ouvir a “caixa falante”, a mãe de Seu Henrique o levou (ainda menino), para ver e ouvir o tal “rádio”, na casa do coronel Murilo Sousa.  Mas o coronel disse-lhes:

— Hoje não...! Voltem amanhã!  No que a mãe de Henrique respondeu:

— Amanhã? Amanhã o carneiro perdeu o lá!

A bem da verdade, o coronel tinha ciúmes do rádio... e havia o gasto com as pilhas, que ele vivia reclamando. E lá pelas cinco horas da tarde, em sua calçada, sentava o Velho coronel Murilo Sousa, que apesar de ter “velho” no nome, de velho mesmo não tinha nada. 

Ele teria, nesta ocasião, pouco mais de quarenta, para cinquenta anos de idade. Mas gostava que o tratassem assim..., pois impunha um certo respeito. Respeito e autoridade! O apelido de “coronel” ele herdara de seu avô..., que fora de fato e de direito Coronel da “gloriosa” Guarda Nacional.

Os Sousa, que eram também Martins, haviam sido os verdadeiros donos do Ipu por gerações e gerações, num passado recente! Assim como os seus primos, os Aragão! Eram eles que escolhiam a dedo, na Primeira República, o promotor, o juiz, o delegado e os policiais da cidade! Bons tempos! 

Todas essas autoridades vinham-lhes tomar a benção, a mando dos governadores, e dos deputados estaduais e federais! E eles retribuíam o “favor”, botando a cidade sempre para votar com os governadores! Entra governador, e sai governador, e eles — os Sousa, os Martins e os Aragão – é que ficam..., controlando os cargos, as sentenças da justiça, e o resultado das eleições no Ipu.

Eram bons os tempos da Guarda Nacional! Sim, a “gloriosa” Guarda Nacional do tempo de seus avós! Na eleição de 1908, seu tio-avô, o coronel Raimundo Aragão, controlou com mão de ferro a lista dos eleitores do Ipu! Até o boticário Tomaz Correia, o homem mais culto do Ipu, não pôde votar, e nem ser votado! 

Ninguém tinha coragem, nem ousadia, de votar contra os Martins e contra os Aragão! O povo não votava para prefeito, votava apenas para presidente, governador, deputado e vereador. Os prefeitos (na época chamados de “intendentes”) eram escolhidos a dedo pelos governadores! E os governadores sempre escolheram alguém dos Martins, ou dos Aragão (os primos de Murilo Sousa). 

Nas eleições de 1926..., depois de “pressões modernizantes”, o governador José Moreira da Rocha promoveria eleições livres para o cargo de prefeito. Os eleitores seriam conduzidos até a seção, e tinham que falar, em voz alta, para todo mundo ouvir, em quem ele iria votar! (O voto não era secreto!). 

E como não poderia ser diferente, o primeiro prefeito eleito no Ipu, aclamado pelo voto popular, foi o coronel Felix de Sousa Martins! Mas também..., quem seria besta de votar contra? O coronel Murilo Sousa sentou-se na cadeira... acendeu seu cigarro..., olhou o seu relógio de pulso (relógio que havia lhe custado uma fortuna!) ..., e ligou “a caixa de madeira” que “falava” e que “cantava” ... Num instante, uma voz linda..., de mulher..., quebrou o silêncio em derredor:

Bandeira branca, amor...

Não posso mais...

Pela saudade...

Que me invade eu peço paz...

Bandeira branca, amor...

Não posso mais...

Pela saudade...

Que me invade eu peço paz...

Saudade, mal de amor, de amor...

Saudade, dor que dói demais...

Vem, meu amor!

Bandeira branca eu peço paz...


Naquela tarde, trabalhou na casa do Seu Murilo um homem negro, de nome José Alves dos Santos, vulgo Zé Pequeno. O apelido lhe veio de sua baixa estatura. Mas ele era um cabra trabalhador, vivendo de biscates, da caça e da coleta de frutas nas matas do Ipu. Ele trabalhou à tarde inteira pelando arroz para o coronel. O casarão era um verdadeiro pomar urbano, com várias árvores frutíferas, distribuídas no quintal, para dar sobra e frutos para os moradores da casa e para os vizinhos. E foi lá, na sombra de uma mangueira centenária, que Zé Pequeno pelou arroz para o comerciante a tarde toda. Depois do expediente de trabalho, Zé só queria tomar um “traguinho” de cachaça no armazém do Seu Joaquim Lima, e ir pra casa, na Boa Vista. Pegou as moedas, agradeceu ao coronel, e saiu.

Estava quase escurecendo, quando o coronel notou que estava sem seu relógio.

— Ôô Alzira, cadê o meu relógio?” perguntou, para a criada.

— Acho que deve tá por aí, coronel, encima da mesa!

Sobre a mesa só havia seu chapéu, uma xícara vazia de café..., a carteira de cigarros... e o rádio... onde uma linda voz masculina cantava:

Tudo em volta é só beleza

Sol de Abril e a mata em frô

Mas Assum Preto, cego dos óio

Num vendo a luz, ai, canta de dor

Talvez por ignorança

Ou mardade das pió

Furaro os óio do Assum Preto

Pra ele assim, ai, cantá de mió

Assum Preto veve sorto

Mas num pode avuá

Mil vez a sina de uma gaiola

Desde que o céu, ai, pudesse oiá


— Porra! Cadê a porra desse relógio..., que eu tinha colocado bem aqui..., em cima da mesa?!”

Sim! Tinha certeza disso! Foi lá que ele o colocou! Aquele relógio valia uma verdadeira fortuna! Sete contos de Réis, para ser preciso! Será que algum ladrão canalha entrou em sua casa... e o roubou... enquanto ele esteve distraído? Além dele, de sua esposa... e da criada da casa, quem mais entrou ali?! Lembrou-se imediatamente do crioulo Zé Pequeno, que ele havia contratado para pelar seu arroz! Será? Quando acabou o serviço, lá pelas quatro horas da tarde, o negro veio até a sala... e aguardou um pouco..., esperando pelo pagamento! “E... foi nessa hora que o relógio do coronel desapareceu! “Negro é tudo safado! Ele foi dar-lhe confiança! E olha o que ele foi fazer?!”. Só pode ter sido ele! Aquele relógio valia mais do que sete contos de Réis! Mas isso não vai ficar assim não!

— Diga ao Valdemar Ferreira que venha aqui, com urgência! Eu tenho um servicinho pra ele!”. Valdemar era o delegado da cidade.

— Diga coronel!

— Valdemar, é o seguinte, eu botei aqui, dentro da minha casa, um cabrinha ladrão, o preto Zé Pequeno, e o meu relógio Oriente, de sete contos de Réis, se sumiu! Eu tenho certeza que foi aquele negro ladrão! Eu queria que você fizesse ele confessar... pra dizer o que ele fez com o meu relógio!”.

— Pode deixar comigo, Seu Murilo, agora mesmo vou providenciar a captura do elemento! Eu lhe dou a minha palavra! Ele vai dar conta do seu relógio!”. 


No rádio outra música se fez ouvir:


Carcará pega, mata e come

Carcará num vai morrer de fome

Carcará, mais coragem do que homem

Carcará pega, mata e come

Carcará é malvado, é valentão

É a águia de lá do meu sertão

Os burrego novinho num pode andá

Ele pega no bico inté matá

Carcará pega, mata e come

Carcará num vai morrer de fome

Carcará, mais coragem do que homem

Carcará pega, mata e come

Carcará...


Quando os policiais chegaram na casa do suposto criminoso, ele estava na calçada, conversando alegremente com os amigos, no Alto da Boa Vista, como se nada houvesse feito! Zé Pequeno não esboçou qualquer reação, paralisado pelo choque do vozeirão estridente do delegado:

— Esteja preso, safado! Vamo agora pra cadeia, pra tu dizer o que é que tu fez com o relógio do homem!

Gaguejando, José Alves apenas balbuciou, com sua voz trêmula:

— Re-re-relógio...? Que re-re-relógio, homemmmm...?

Enquanto isso, os policiais entravam em ação, prendendo-lhe os pulsos e o arrastando para o meio da rua.

— O relógio do Coronel Murilo Sousa, negro filho de uma puta!!!

Chegando na cadeia, Zé Pequeno teve as mãos e os pés amarradas em uma grossa cadeira de aroeira. O delegado se aproximou:

— Nego... eu vou te dar um conselho... me fala logo onde foi que tu botou o relógio do homem, que tu não vai sofrer!

— Seu Valdemar, pelo amor de Deus, eu não sei que relógio é esse que o senhor tá falando!

— Nego... nego... tu vai continuar achando que nós somos otários?! Rapaz... eu vou te dar um conselho... fala logo pra quem tu vendeu o relógio do coronel, enquanto eu ainda tô sendo educado contigo!

— Mas, seu Valdemar, pelo amor de Deus, eu não sei de relógio nenhum não!

— Muito bem, nego... tu é corajoso mesmo! É determinado! Mas eu vou te ensinar a respeitar o alheio! Segura a mão desse nego ai, moçada!

Disse isso e pegou um alicate... mostrando-o ao homem da cadeira...era um alicate de cortar arame farpado!

— Última chance, nego! Fala logo... antes d’eu arrancar tuas unhas!

— Pelo amor de Deus, seu Valdemar! Não faça isso comigo não! Naããããooooo! Nãããoooo!”. 

Eram três policiais e o delegado, todos empenhados a arrancar sua confissão.

— Naããããooooo! Nãããoooo! Gritou o homem da cadeira, antes de desmaiar de dor e de medo!  Só para ser acordado em seguida..., com um balde de água fria no rosto!

— Acorda vagabundo!”. Quando se deu conta, já estava sem algumas as unhas dos dedos da mão direita! E nada de “delatar” o “esconderijo” do relógio.

— Fala negro safado! Tu acha que vai ficar com o relógio do homem?! Diz logo onde ele está, porra!”.  Muitos curiosos passaram pelas ruas do entorno da cadeia.... e ouviram os gritos: “Nããããoooo! Naããããooooo! Nãããoooo!”.  O “interrogatório” teve a cidade por testemunha!

Casa de Cultura - Antiga Cadeia Municipal

Amanheceu o dia... e o homem da poltrona não falou... a penas gemeu e gritou, feito um desesperado, alegando inocência! Aos seus pés, uma poça de sangue e de urina! O delegado chegou sedo, para dar continuidade ao “interrogatório”:

— Hoje tu vai falar, nem que eu tenha que arrancar teus olhos, negro filho de uma puta!

O homem amarrado na cadeira já nem implorava por piedade, ou misericórdia... apenas queria morrer! Que o matassem logo de uma vez! Ele estava quase irreconhecível! Sua mão e seus rosto estavam inchados... O delegado chamou os policiais, pegou o alicate:

— Agora será no pé! Segurem forte ai!

— Pelo amor de Deus, Seu Valdemar, não faça isso comigo nããããoooo! Naããããooooo! Nãããoooo!”.

Enquanto isso, no casarão do Coronel Murilo Sousa, a criada dá início à faxina matinal. Havia muita sujeira pelo chão... grãos de milho e farinha espalhados pela casa... grãos de café... poeira... cascas de arroz... A velha casa estava particularmente suja naquela manhã, depois do roubo do relógio e da prisão do culpado! Então... varrendo na sala, atrás de um grande saco de milho... que estava em um canto da casa, a criada avistou algo metálico, refletindo a luz da manhã. O que seria? Era... era... não pode ser!

— Seu Murilo, pelo amor de Deus! Olhe aqui, é o relógio do Senhor! Que tava escondido... atrás do saco de milho!

— Alzira, pelo amor de Deus, não fala isso não! E não é que o nego véi é inocente! Corre Alzira, vai lá na delegacia, manda o Valdemar soltar ele imediatamente! Corre lá! Vai ligeiro, mulher!”

Alzira chegou rápido na cadeia! Ainda a tempo de ouvir, lá de dentro, os gritos de alguém sendo “interrogado”: “Nããããoooooooo! Naããããooooooooo! Nãããoooooooo!”. Eficiente, o delegado já havia retomado os trabalhos nas primeiras horas da manhã.

Agora é Alzira que grita:

— Pare! Pare! Pare, seu Valdemar! Nós achamos o relógio! O Coronel mandou lhe dizer que soltasse o homem, pois ele é inocente! Mal Valdemar desamarrava as mãos e os pés do infeliz, o próprio coronel Murilo Sousa, em pessoa, deu o ar da graça:

— Comadre Zé... deixe eu lhe dizer... eu lhe peço perdão! Eu achei que fosse o senhor...! Esse relógio vale uma fortuna... Pois ele agora é seu agora! E tá aqui, mais cinco contos de réis pro Senhor...! É tudo seu! Eu só peço o seu perdão!”.

O negro permaneceu sentado na cadeira. É provável que não tivesse condições de se levantar... Um de seus olhos estava tão inchado, que ele não conseguia abri-lo! A mão direita, sem as unhas do polegar e do indicador, parecia a mão de um defunto! Seu pé esquerdo, com a unha dependurada, coberta de sangue... já não sentia dor... estava dormente! Na sua frente havia uma poça de sangue e de urina! Olhou para o coronel..., que lhe perdia perdão... olhou para o delegado, que ainda segurava o alicate... olhou para os policiais a sua volta... olhou para a criada Alzira... Tentou se levantar... não conseguiu...

— Levantem o homem!

Disse o coronel! Suas mãos tremiam... uma grossa baba de saliva caia de sua boca... Tomou coragem e falou:

— Não tem dinheiro nenhum que pague isso não, coronel! Leve o seu dinheiro! Leve o seu relógio! Perdão o Senhor vai pedir é a Deus, ou ao Diabo! Quando o senhor morrer! Se depender de mim, o Senhor vai é pagar isso no Inferno!”

Murilo Sousa era um homem religioso! Aquelas palavras penetraram fundo em sua alma! A cidade inteira soube do acontecido! Ele fora considerado “um monstro”, e alguém que seria “punido por Deus”, por sua “ofensa a um inocente”! O martírio de um inocente é uma grave ofensa a Deus! Mais teria sofrido Jesus, o maior dos inocentes, a caminho do Calvário! O coronel ainda viveria por quase uma década. Mas seria sempre acossado por sua consciência, lembrando das palavras do negro da cadeira: “Perdão o Senhor vai pedir é a Deus, ou ao Diabo! Quando o senhor morrer! Se depender de mim, o Senhor vai é pagar isso no Inferno!”. À noite, vez ou outra, tinha pesadelos, e se via amarrado na cadeira da delegacia... sendo torturado pelo próprio Diabo, auxiliado pelo negro Zé Pequeno! Anos mais tarde, vendo que sua vida estava perto do fim, deixou registrado em testamento que “deixava o casarão de sua família” para a filha de sua criada, num gesto de misericórdia. Seria uma tentativa de “limpar sua barra” junto ao Criador, no dia do seu Julgamento?  Isso eu não! Já Valdemar, dizem que na velhice lhe apareceu uma doença misteriosa – câncer nos ossos? Detectada a moléstia, os médicos lhe cortaram as penas na altura do joelho, numa tentativa inútil de salvar sua vida. Mas o mal já havia lhe subido pela coxa! Então lhe cortaram a coxa, junto à virilha! Mas o mal já havia subido para os ossos do quadril e da coluna... e para os intestinos... não havia mais nada a fazer! Dizem que ele morreu aleijado, gritando feito louco no leito do Hospital municipal. E de vez enquanto, vinha-lhe a garganta um grito de dor e de agonia, misturado com um “pedido de perdão” ... Um pedido de perdão dirigido a Deus..., e outro ao crioulo Zé Pequeno, vinte e cinco anos atrás! Nos corredores do Hospital, no dia em que Valdemar Ferreira foi prestar contas com Deus..., dizem que a faxineira, para encobrir seus gritos, ligou o rádio em volume máximo, e sai essa canção, na bela voz de uma mulher: 

Bandeira branca, amor

Não posso mais...

Pela saudade...

Que me invade eu peço paz...

Bandeira branca, amor...

Não posso mais...

Pela saudade...

Que me invade eu peço paz...

Saudade, mal de amor, de amor...

Saudade, dor que dói demais...

Vem, meu amor!

Bandeira branca eu peço paz.


Além de perder as pernas, Valdemar havia sofrido um derrame (na época chamado de “trombose”) e perdeu parte de sua sanidade. Os enfermeiros tiveram que amarrá-lo na cama, para que ele permanecesse deitado.  Em meio a gritos, gemidos e delírios, ele se erguia desesperado, ora pedindo “socorro”, ora pedindo “perdão”! “Perdão, seu Zé, perdão! Tenha pena de minha alma! Perdããooooo!”. Ao seu lado, via um negro enorme, de uns dois metros de altura, que saia fogo dos olhos, e via também a alma de Zé Pequeno. E ao seu lado havia um braseiro... e Zé Pequeno, com um abano na mão, abanava as brasas, onde um ferro incandescente ardia! E em certo momento, o negro gigante pegava o ferro em brasa... e torturava Valdemar com ele: “Nããããoooooooo! Naããããooooooooo! Nãããoooooooo!”. E assim que o ex-delegado passou seus últimos dias..., sendo torturado pelo próprio Diabo, e pela alma de Zé Pequeno!

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