Para Cauê Martins, ação do Ministério da Justiça foi fundamental para diminuição no número de ataques em 2024 e 2025 - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Discurso de ódio e a exaltação de agressores têm ganhado espaço nas plataformas digitais, impulsionados por algoritmos
O crescimento de ataques violentos em escolas brasileiras está diretamente ligado à lógica de funcionamento das plataformas digitais, afirma Cauê Martins, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em entrevista ao podcast Conversa Bem Viver, do Brasil de Fato, ele explica que as chamadas big techs privilegiam o engajamento, mesmo quando gerado por discursos de ódio.
Um levantamento recente do Fórum indica que o número de publicações com ameaças a escolas nas redes sociais cresceu 360% nos últimos quatro anos. Em parceria com a empresa de monitoramento Timelens, a organização analisou 1,2 milhão de conteúdos relacionados a ataques a escolas, discurso de ódio e ameaças diretas. Entre janeiro e maio de 2025, foram mais de 88 mil menções violentas contra integrantes da comunidade escolar. Em 2024, o número havia sido de 105 mil, e, em 2021, de 44 mil.
“Isso está diretamente ligado ao modo como as plataformas operam. Apesar de não promoverem diretamente o discurso de ódio, elas incentivam o engajamento, inclusive com conteúdos violentos, para viabilizar seus modelos de negócio”, diz. Para Martins, o problema vai além da visibilidade dada a conteúdos violentos: há um incentivo estrutural. “O algoritmo, em vez de barrar esse comportamento, o amplifica”, aponta.
‘Raiva silenciosa’
A ausência de redes de acolhimento e escuta, somada ao funcionamento dessas plataformas, gera um terreno fértil para o recrutamento simbólico de jovens em sofrimento psíquico, avalia o pesquisador. “Estamos diante de um cenário em que os jovens, em vez de redes de cuidado, encontram uma identidade nessas plataformas redes de ódio” As bolhas digitais, segundo ele, fornecem validação emocional e identitária baseada em ideias excludentes e violentas.
Martins chama atenção para como esse processo se relaciona com a construção social da masculinidade e a falta de espaços de escuta para meninos e jovens. “Esses jovens em sofrimento psíquico encontram nas plataformas validação de suas dores, mas por perspectivas antidemocráticas, racistas, misóginas. Além disso, são desafiados a provar seu pertencimento a esses grupos nas redes sociais por meio de atos ilícitos”, explica.
Para o pesquisador, essas bolhas alimentam uma “raiva silenciosa” que, quando não enfrentada, pode se transformar em violência. “Muitos jovens acabam encontrando nessas redes não o acolhimento, mas a radicalização. E os algoritmos, infelizmente, não impedem, mas amplificam esse processo”, reforça. Ele propõe que escolas e famílias assumam o papel de criar espaços de cuidado emocional e práticas de convivência democrática, para evitar que esse ressentimento seja canalizado em atos extremos.
A análise também aponta para uma crise mais ampla, atravessada por disputas políticas e culturais. “As redes algorítmicas canalizam essa raiva, esse ressentimento e essa mágoa diante da constatação de que outras identidades e corpos também têm o direito de ocupar espaço público e exercer poder.” Para Martins, as redes alimentam esse ressentimento como parte de um projeto econômico e político que se articula à ascensão da extrema direita em várias partes do mundo, ao mesmo tempo em que minorias conquistam mais direitos e espaços.
Big techs lavam as mãos
Ele critica abertamente a postura das grandes empresas diante desse cenário. “As big techs têm consciência do papel que exercem nessa canalização do discurso de ódio, mas cinicamente lavam as mãos”, acusa. Como exemplo, cita a Meta (proprietária do WhatsApp, Facebook e Instagram), que recentemente flexibilizou suas políticas de moderação de conteúdo. “o pudor está diminuindo. O que antes era restrito à deep web, ficava por debaixo dos panos, agora está cada vez mais visível.”
Para Martins, a responsabilização das plataformas é urgente, mas não suficiente. É preciso também investir na escuta ativa de jovens e no fortalecimento de vínculos. “Uma hipótese importante de prevenção é justamente o fortalecimento de espaços de cuidado emocional e práticas de convivência democrática. Isso é papel da escola, da família, das instituições”, destaca.
Confira a entrevista completa:
A pesquisa aponta um crescimento significativo nos registros de ataques de violência extrema em escolas e estabelece um paralelo com a intensificação do conteúdo violento nas redes sociais. Como vocês perceberam a relação entre a disseminação do discurso de ódio na internet e o impacto disso no dia a dia das escolas?
Esse resultado acabou comprovando e ratificando algumas hipóteses que nós já tínhamos ao observar o crescimento dos ataques de violência extrema nas escolas. Houve um pico no Brasil em 2022 e 2023, com dez ataques em um ano e 15 no outro, o que fez o Estado brasileiro priorizar essa agenda. Nos últimos anos, em resposta a isso, esse número diminuiu. Agora, a medição nas redes sociais trouxe novos elementos para análise. Quando observamos que o número de posts contendo ameaças às escolas nas redes abertas cresceu 360%, e os comentários elogiando agressores também aumentaram, percebemos algo preocupante. Em 2011, no contexto do ataque em Realengo, no Rio de Janeiro, havia apenas 0,2% de comentários com esse teor. Já em 2025, esse número saltou para 21%, refletindo uma percepção que tenta justificar o ato do agressor como se ele fosse um herói ou uma figura artística.
Isso está diretamente ligado ao modo como as plataformas operam. Apesar de não promoverem diretamente o discurso de ódio, elas incentivam o engajamento, inclusive com conteúdos violentos, para viabilizar seus modelos de negócio. Segundo nossa pesquisa, conteúdos de ódio geram 67% mais interação do que debates democráticos. Isso revela muito sobre a fase atual do capitalismo, um capitalismo de vigilância, em que quanto mais tempo os usuários passam nas redes, mais dados comportamentais são gerados e comercializados. Não importa se esse tempo está sendo gasto dentro de uma bolha de ódio. Nós estamos diante de um cenário em que os jovens, em vez de redes de cuidado, encontram uma identidade nessas plataformas redes de ódio. E o algoritmo, em vez de barrar esse comportamento, o amplifica.
O estudo mostra que, até 2023, 100% dos agressores em ataques extremos eram homens, embora o cyberbullying e o abuso afetem igualmente meninos e meninas na internet. Isso indica um direcionamento específico ao público masculino. O que esses dados revelam sobre a construção da masculinidade e a falta de atenção à vulnerabilidade dos meninos e rapazes na fase de formação?
O que nós podemos analisar é como essa dor não acolhida desses jovens, em geral meninos, acaba sendo absorvida pelas plataformas. Até 2023, todos os autores dos ataques de violência extrema em escolas eram homens. Houve um caso no ano passado que fugiu à regra, mas é aquela exceção que confirma a tendência. O que ocorre é que esses jovens em sofrimento psíquico encontram nas plataformas validação de suas dores, mas por perspectivas antidemocráticas, racistas, misóginas. Além disso, são desafiados a provar seu pertencimento a esses grupos nas redes sociais por meio de atos ilícitos: estupros virtuais, incentivo à automutilação, maus-tratos a animais e até lives [transmissões ao vivo] com violência contra pessoas em situação de rua.
Essa “raiva silenciosa”, como nós chamamos, é amplificada pelas bolhas de ódio criadas por algoritmos que não são confrontados. Uma hipótese importante de prevenção é justamente o fortalecimento de espaços de cuidado emocional e práticas de convivência democrática. Isso é papel da escola, da família, das instituições. Mas precisamos também responsabilizar as redes por esse fenômeno chamado “machosfera”: bolhas que oferecem identidade e pertencimento baseados em ideais misóginos, preenchendo o vazio deixado pelo colapso da masculinidade tradicional. Uma vez que essa figura violenta, viril, machista se mostra inviável, muitos jovens acabam encontrando nessas redes não o acolhimento, mas a radicalização. E os algoritmos, infelizmente, não impedem, mas amplificam esse processo.
Vimos nas últimas décadas, no mundo todo, um avanço nos movimentos por direitos das mulheres. Hoje, há mais mulheres educadas, conscientes de sua força e dos seus direitos. Isso, dentro desse contexto de capitalismo exacerbado, parece gerar uma mágoa, uma angústia nos homens que não conseguem mais ocupar aquele papel tradicional de provedor. Ao mesmo tempo em que esse papel é questionado, a sociedade não oferece caminhos para que eles explorem novas possibilidades, sentimentos e angústias. Essa ausência de caminhos tem sido transformada em raiva e violência pela internet?
Sim. As redes algorítmicas canalizam essa raiva, esse ressentimento e essa mágoa diante da constatação de que outras identidades e corpos também têm o direito de ocupar espaço público e exercer poder. Esse ressentimento tem se materializado nas crises democráticas que temos vivenciado, inclusive aqui no Brasil, especialmente no último ciclo do governo federal. Nos Estados Unidos, vemos o mesmo movimento: uma figura que representa esses valores ressentidos do homem branco, heterossexual, viril, rico, sendo alçada ao poder, e a sociedade tentando reagir.
As empresas do Vale do Silício estão profundamente envolvidas nisso. Não à toa, muitas participaram da posse de Donald Trump e continuam associadas ao seu retorno. As big techs têm consciência do papel que exercem nessa canalização do discurso de ódio, mas cinicamente lavam as mãos. A Meta, por exemplo, flexibilizou neste ano a moderação de conteúdos de ódio. E os efeitos já aparecem: em 2023, 90% do conteúdo de ódio estava na deep web. Em 2025, esse número caiu para 78%, ou seja, houve um aumento de 10% para 22% do conteúdo de ódio circulando em redes abertas. Isso mostra que o pudor está diminuindo. O que antes era restrito à deep web, por debaixo dos panos, agora está cada vez mais visível, inclusive, imagino, nos aplicativos de mensagens criptografadas e grupos privados, onde a intensidade pode ser ainda maior.
A mobilização e o alerta de autoridades federais e estaduais estão associados à redução no número de ataques a partir de 2024. Ainda é cedo, mas o dado sugere que a supervisão e a priorização do tema fazem diferença. Quais lições podemos tirar dessas conclusões para basear políticas públicas e a resposta das famílias e escolas?
Nós percebemos como a atuação coordenada do governo federal em abril de 2023, logo após uma onda de ameaças e ataques que gerou comoção nacional, foi fundamental. Uma pesquisa nossa, publicada naquele ano, apontou que 12,6% das escolas sofreram ameaças, muitas vezes com mensagens replicadas, mas que causavam medo real.
A queda no número de ataques com vítimas fatais a partir de 2024 mostra que políticas públicas e ações concretas fazem diferença. Destaco o papel do Ministério da Educação no monitoramento e apoio psicossocial às redes escolares atingidas por violência, com destaque para o programa “Escola que Protege”, lançado no ano passado. Também foram fundamentais as ações da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, que ampliaram a estrutura da divisão de crimes cibernéticos e atuaram preventivamente para impedir atentados. Alguns casos foram noticiados, como o do show da Lady Gaga e o dos meninos que queimaram uma pessoa em situação de rua. Outros, por razões investigativas, não chegaram ao público.
A queda nos ataques é indicativa da priorização que não vimos no governo anterior. Em 2022, ano eleitoral, houve um elevado número de ataques e o tema foi negligenciado, muitas vezes substituído por pautas como o incentivo ao armamento da população. Mas o que nós observamos é justamente o oposto: o acesso facilitado a armas torna os ataques mais letais. Nos Estados Unidos, onde isso é permitido, os números são assustadores.
Por isso, além da atuação das forças de segurança, é essencial investir em práticas restaurativas nas escolas, que criem ambientes acolhedores para crianças e adolescentes em sofrimento psíquico. E volto a enfatizar: é urgente responsabilizar as plataformas. O STF [Supremo Tribunal Federal] está discutindo esse tema. Enquanto as big techs continuarem isentas, e seus líderes se preocuparem mais com a “energia masculina” dos escritórios, como disse uma vez o próprio Mark Zuckerberg, do que com o sangue que está sendo derramado fora das telas, a sociedade continuará arcando com as consequências dessa omissão.
FONTE: BdF
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